Uma base de cerâmica de Sarajevo
Neste período de quarentena, em que nos vemos obrigados a parar fisicamente, não há limites para onde a nossa mente nos pode levar. Olhando à volta do meu quarto, vejo objectos trazidos de viagens que fiz no passado e que, instantaneamente, espoletam memórias das mesmas. É uma forma de escapismo momentâneo que traz algum conforto em tempos incertos. Deixem-me levar-vos numa viagem à volta do meu quarto.
O primeiro objecto é uma base de cerâmica que trouxe de Sarajevo. A capital da Bósnia e Herzegovina é uma cidade que combina uma história conturbada e variada com a força de vontade da sua população na recuperação da cidade após a guerra que a assolou, tornando-a numa potência emergente europeia.
O plano inicial era apenas fazer uma viagem de carro pela Croácia, mas rapidamente nos tornámos mais ambiciosos. Para chegar à pérola do Adriático, também conhecida como Dubrovnik, teríamos de atravessar um pequeno segmento de território bósnio, a secção de Neum. De igual maneira, a partir de Dubrovnik, estaríamos apenas a alguns quilómetros de Montenegro e das fabulosas Bocas de Cattaro. Por isso, estendemos o nosso roteiro, passando pelo sul de Montenegro, subindo depois pelas montanhas até Plužine e regressando, por fim, a Zagreb através da Bósnia e Herzegovina. Isso implicava, claro, passar por Sarajevo, a sua capital.
A cidade encontra-se aninhada entre os Alpes Dináricos, não tendo outra hipótese senão estender-se ao longo do vale do rio Miljacka. O seu centro é, por isso, mais horizontalmente distribuído que concêntrico, com pontos de interesse dispersos ao longo de avenidas e ruas compridas, paralelamente ao rio.
Sarajevo é uma cidade interessantíssima que está a passar por um desenvolvimento vertiginoso em várias vertentes, depois de ser passada de mão em mão entre impérios e diferentes povos e de ter sofrido os efeitos devastadores das maiores guerras combatidas em território europeu em tempos recentes, . A reconstrução da cidade após o cerco de 1425 dias resultante da Guerra da Jugoslávia já surte os seus efeitos, mas, ao afastarmo-nos um bocadinho do centro, as memórias desse evento ainda se denotam em alguns edifícios devolutos e nos buracos de balas espalhados pelas suas fachadas. É uma experiência algo desconcertante e crua, assim como visitar o Museu dos Crimes Contra a Humanidade e Genocídio — que não é propriamente um plano agradável de Sábado à tarde, mas ao mesmo tempo bastante urgente e revelador.
Uma pequena história que acho que vale a pena partilhar é que o primeiro Festival de Cinema de Sarajevo decorreu ainda durante o cerco à cidade. Os filmes e personalidades convidadas (com nomes sonantes como Alfonso Cuarón ou Leos Carax) tinham de ser transportados quase clandestinamente, em carros blindados, para chegarem sãos e salvos aos lugares de projecção, aos quais o público chegava também arriscando a sua vida. É comovente pensar na devoção ao cinema que gerou aquele que é um dos maiores festivais de cinema da Europa actualmente, apesar das adversidades.
Uma das coisas que mais caracteriza a cidade é a sua diversidade religiosa — fruto das diferentes ocupações. A parte mais cativante, no geral — mas especialmente para pessoas habituadas aos símbolos católicos — são os quarteirões muçulmanos. A longa influência do Império Otomano mantém-se hoje ao longo de todo o país, sendo especialmente notória nos bazares do centro este da cidade e nos minaretes das mesquitas que pintalgam a paisagem urbana. Foi fácil esquecer-me de que ainda estava na Europa quando entrei numa loja de candelabros, tapetes, porcelanas e cerâmicas de influência islâmica. Só pensava em como poderia levar tudo aquilo na minha bagagem, mas, por falta de espaço, tive de me ficar apenas por um objecto mais pequeno — uma base de cerâmica maravilhosa.
É um souvenir um pouco mais comum do que outros que trouxe de outras viagens. No entanto, o impacto visual do azul forte, da sua forma floral e da simetria imperfeita contrasta com a madeira da minha secretária de uma maneira que me lembra do choque cultural que experienciei em Sarajevo e, a uma escala maior, em toda a Bósnia e Herzegovina.
Até agora, foram poucos os sítios que não me impressionaram assim tanto nas minhas viagens, mas posso dizer que Sarajevo foi sem dúvida daqueles que me impressionou mais. A sua ascensão numa altura em que já se conhecem bem os perigos da gentrificação pode dar azo a que o seu património seja conservado de forma sensata e a que o espírito empreendedor e boémio que deu origem a tanta arte se mantenha intacto, apesar do seu crescimento.