Uma cruz no roque popular

por Romão Rodrigues,    5 Maio, 2020
Uma cruz no roque popular
Fotografia de Luuk Wouters / Unsplash
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Uma das frases mais utilizadas no reduto popular é — e cito — “só damos valor quando perdemos”. Serve para muita coisa, até para posts de páginas do Instagram. Outra é “os artistas portugueses não são valorizados na altura devida e só lhes conferem o reconhecimento, caso aconteça, volvidos anos”. Esta, apesar da restrição artística, destina-se a inúmeros ilustres. E eu, como pretendo afirmação diante da sociedade e como estou sob o pretexto de uma birra a resvalar a idade adulta, quero aproveitar para confessar que devo um pedido de desculpas sincero aos Diabo na Cruz. A continuação deste parágrafo é inútil, engatilhem lá o argumento lógico! Siga a Rusga…

Agosto de 2015, autoestrada em direção ao Algarve. Playlist somente lusitana. Ouço a primeira canção — a inolvidável “Vida de Estrada” — e, intimado pela coincidência, apercebo-me de algo extraordinário: uma batida mexida, uma incineração de palavras melódicas e um lirismo poético que foi capaz de colocar o astro cinematográfico de Woody Allen junto de expressões populares. Chamou-me a atenção, embora fosse uma linguagem distinta da música até aí escutada. Continuei a exasperar, o calor abafado dominava o carro e a comodidade dava sucessivas mostras de insatisfação.

Até 2019, passaram-se duzentas mil horas, talvez — o cálculo foi precipitado, não foi? Realizando o scroll habitual no Twitter, constato o fim da atividade da banda e diversos pregões no muro das lamentações virtual. Os astros alinharam e, motivado pela tragédia, propus-me a analisar os álbuns, dos mais antigos aos mais recentes. Virou! (2009) Roque Popular (2012), Diabo na Cruz (2014) e Lebre (2018) apoderaram-se do Spotify ininterruptamente durante um mês. E, ao escutar, ocorria-me apenas a simplicidade de um “Tão Lindo”. Ganhar o dia com uma péssima notícia para os fãs (comigo incluído posteriormente) foi irónico, mas producente.

Na fase embrionária do meu percurso académico, conheci Tiago Leite e, desde muito cedo, se destinou o nosso Casamento musical. Tal como eu, irrompia dele aquele prazer inexplicado pelo que aparentemente é esquecido com tamanha facilidade, pelas tradições campestres e das aldeias de norte a sul de Portugal, aquela vibração do já desmistificado “roque popular”, o querer bater o pé ao ritmo de todo o mundo animal inserido nas canções e o apetite desafogado pelo saborear das iguarias nas receitas que oferecem — de bom grado — ao seu público. Os Diabo são mesmo isto, são Pioneiros ao que designo de “rock inspirador de gerações rurais”, modelando-o e adaptando-o aos baluartes e às raízes culturais múltiplas com que se depararam, sem nunca esquecer uma desconstrução quase que pândega do panorama religioso. Valham-nos as Sete Preces aquando da Procissão folclórica.

O misticismo da paixão que acercou o verão de 2019 foi indescritível. O que os Diabo na Cruz relataram idem. Parecia tudo adequado ao que senti. Os amores característicos dessa época do ano são visados por intermédio de Jorge Cruz, sob a forma de uma voz tórrida e de uma inocência a querer emergir das entrelinhas, a explanar ao público concentrado que nunca é tarde para escrever novos capítulos nas aventuras dos sentimentos e a retardar, ao máximo, que as lagoas se formassem nas retinas. Quem é que nunca teve ou encontrou uma Luzia? Quem é que nunca lhe dedicou uma Balada? Palmas de início ao fim da atuação. Mas, como em tudo, existe o reverso da medalha: a Moça Esquiva. Aquela pela qual iniciamos uma aproximação premeditada e o levantar das Saias sob o pretexto das mais belas e fundamentadas razões. Ou até mesmo uma Dona Ligeirinha, bajulada e requerida por uma cambada de “fidalgos roedores” quando nos tem a nós, aos sinceros. Do que precisará mais?

A banda de Portugal Continental, mas formada em Lisboa — palavras deles — delimita uma Fronteira do que até então se edificou no panorama musical do país: não usufruem de uma popularidade ao nível dos Xutos e Pontapés, apesar de terem incidido o trabalho sobre o popular; não exibem odes metropolitanas dirigidas à Invicta como os GNR e Rui Veloso orquestraram outrora; não almejam a “portugalidade” e a época dourada da nossa História que a Sétima Legião evidenciou; não são a voz da intervenção a par de José Mário Branco ou Zeca Afonso; não representam a indefinição pura e encantadora característica dos Ornatos Violeta. Representam, sim, o povo proveniente do meio rural, a Terra Ardida, muitas vezes dizimada.

Uma nota digna de reparo: quando observei os agradecimentos à data da separação, pensei que aquela legião estava louca. Percebi, facilmente, que os Loucos Estão Certos muitas, muitas vezes. E, à semelhança deles, eu também quis estar na Mó de Cima.

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