Uma divina comédia à portuguesa

por Lucas Brandão,    3 Setembro, 2019
Uma divina comédia à portuguesa
Dante no exílio / Autor desconhecido

Se Dante Alighieri fosse português e escrevesse a sua “Divina Comédia” por cá, nesta altura, seria um desafio bem mais “dantesco” do que aquele com o qual se deparou na sua Itália, na altura totalmente fragmentada nas suas regiões constituintes, em diferentes identidades e, dentro delas, em diferentes fações. Tinha a Antiguidade com maior frescura, o papel de Jesus Cristo com um ar mais rarefeito, ainda beneficiando de uma quase convivência com os santos e mesmo de uma heresia mais sentida, aprofundada com a Igreja a comandar os espíritos, enquanto os reis e os duques lideravam os corpos.

No entanto, Portugal seria, desde logo, um caso bem mais complicado. A definição de herói e a sua possível adequação a um Inferno, a um Purgatório ou a um Paraíso seria bem mais abstrata. Se calhar, é assim em todos os países. Porém, pensando neste pequeno cantão à beira-mar plantado, há muita experiência, há muitas histórias, enredos, lendas e mitos. Há os descobridores, há os clérigos, há os reis, há os mandatários, os corregedores, os embaixadores, os conquistadores e os “desconquistadores”. Ao mesmo tempo que esta pequena elite pontificava, estava lá um povo. O povo que predominava, na sua parca subsistência, na sua pobreza, lutando pela sua sobrevivência e pela dos (muitos dos) seus. Tudo isto sem nunca esquecer as mulheres, tantas delas esquecidas ao longo da história, por mais proeminentes que tantas delas fossem. O que Dante teria a dizer de tudo isto, à luz da sua vida e do seu amor perdido (e, futuramente, reencontrado)?

O seu guia poderia ser um Camões, o grande poeta clássico de Portugal. Um homem dividido entre um caráter heróico e corajoso, à imagem do estereótipo do navegador português, erudito e empreendedor, mas também vítima do seu temperamento e dos confrontos consigo mesmos, os mesmos que só seriam identificados, medicados e tratados por tu num futuro. Foi assim com Bocage, foi assim com Pessoa, foi assim com outros que Dante iria encontrando na sua viagem pelas três dimensões de um eventual além. Camões levaria, assim, Dante ao Inferno e aos seus círculos, mas seria assim tão concreto aquilo que iria encontrar? Será que os homens responsáveis pela gestão das colónias, desequilibrada e injusta, estariam a pagar pelos seus pecados, tão perniciosos como incorretos com aqueles que acabariam “evangelizados” e explorados? O que seria feito dos espíritos preocupados com a portugalidade e com um império elevado, embora míope, acima da prosperidade de um bem comum, que discursasse a uma só voz sobre toda a sociedade? E os inquisidores, que castigaram severamente tantos daqueles que procuravam professar aquilo que entendiam ser a sua verdade, sem macular a possibilidade do cristianismo se exprimir à luz das suas traves mestras. Sabíamos, decerto, que todos os perpetradores dos crimes mais aberrantes, daqueles que preenchem as páginas da história da criminologia portuguesa, teriam lá o seu poiso. Era a certeza de um círculo na qual há mais dúvidas do que certezas, mediante o olhar que o patriota, mais do que o humano, tivesse.

Quanto ao Purgatório, esse estaria cheio. Seria o lugar de muitos dos aspirantes ao paraíso, mas que se viram deparados com os pecados capitais. Tantos aqueles que fizeram da avareza da sua riqueza e da luxúria da sua opulência o grão para os mais necessitados. Aqueles que, motivados pela gula, foram catapultados para uma acumulação sem precedentes e com poucos limites. A ira que motivou tantos conflitos bélicos, com os vizinhos espanhóis e mesmo cá dentro, por mais nobres os motivos. Era a justiça de então. A preguiça que fez com que graves problemas se fossem acumulando e surgindo. Provavelmente, grande parte dos reis de Portugal estariam por aqui, por mais divinizados que fossem. Foram motivados por muitos dos pecados capitais que o cristianismo delineou, por mais que governassem em nome de Deus e reverenciando o Papa. Também grande parte dos políticos que orientou o Estado português nas suas Repúblicas conheceria aqui o seu lugar, porque, sem beliscar os direitos humanos, nem sempre os zelaram da melhor forma, toldados pela ideologia ou pelos eventuais interesses. A crítica camoniana era impecável, irrepreensível e captava toda esta dimensão, comprovando as suas profecias lá no tempo dos Descobrimentos. Verdade que cantava a glória desses descobridores, desses superadores de obstáculos sobrenaturais, mas da exortação se fez lição que não foi aprendida. Dante recolheria essa lição e cruzaria com a sua própria narrativa de vida, vendo que nem sempre conseguiu ser o melhor de si mesmo, apesar da presença do seu amor, que agora chegava. A história continua a ser contada já por Beatriz, a sua amada.

O Paraíso era alcançado. E agora? Sobravam os mitos, as lendas, as reverências que se ficaram pelo imaginário. Também aí Portugal é profundamente criativo. Não é que o povo fosse suficientemente inocente para que o Paraíso fosse para ele. De igual modo, os clérigos estavam longe de ter um cadastro moral limpo e sadio. Dante daria por si a sós com Beatriz num imaginário rico de crenças, de ideias e de uma inspiração que deu à luz a poesia, a música, a filosofia, a ciência e o engenho de tantas almas bem queridas e bem esmeradas que Portugal soube perfilhar e criar. No entanto, também eles foram humanos. Também eles cometeram pecados. À luz daquele Deus justiceiro que Dante foi conhecendo, quem é que em Portugal almejaria ao Paraíso? Não lhe serviriam os monumentos a sua honra. Bastaria uma manjedoura e uma genuína vontade de acolher o próximo e de fazer si o melhor de si mesmo. A simplicidade.

Dante deparava-se com a realidade do Paraíso, de um Paraíso que habitua em todos nós, que está ao seu acesso, por mais que, física ou espiritualmente, continuarmos nessa espécie de Purgatório. O Paraíso é aquilo que se faz com a vida que se tem, com a memória que fica, com o futuro risonho que se vai desenhando, por mais que a santidade seja fundamentada naquele espírito messiânico, sebastianista, que virá num dia de nevoeiro. Dante saberia que os portugueses, por mais que aclamassem o espírito guerreiro, destemido e até destravado, mas também cosmopolita e diplomata, eram humanos. Também eles capazes de encher o Inferno, de se expiarem no Purgatório e de olharem para o Paraíso como uma possibilidade real e capaz de se concretizar. Também eles capazes de pegar numa identidade muito concreta, de compreender o seu passado e de fazer dele mote para que o Paraíso faça parte recorrente das suas vidas.

Dante iluminou o caminho com o amor, apesar das suas configurações trágicas, mas com as quais também estamos tão familiarizados. O amor pode ser, de verdade, um caminho que aproxima do Paraíso dantesco. Aos olhos de uma cristandade que permanece na herança de Portugal, são valores que se eternizam nas coisas mais simples. Numa natureza em plenos pulmões, num mar estendido por toda a sua altura, numa rusticidade que não é comum. Enfim, damos por nós a estar todos no Paraíso, mesmo sem reparamos. Dante, ao lado de Beatriz, sorriria perante esta comédia. De facto, divina era por ser tão humana.

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