Uma lenda chamada Jorge Palma
Desde a escola do conservatório e a consequente erudição do piano, até à subversão da guitarra e das ruas, Jorge Palma tornou-se num marco incontornável da música portuguesa. O seu ecletismo a nível da composição — a complexidade e liberdade do ritmo jazzístico e os arranjos de todas as suas músicas são uma lição para qualquer artista musical — como a poesia das suas letras, assim o comprovam. Em 2020 completou as suas 70 voltas ao sol e, em Novembro, foi agraciado com a condecoração da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente da República. Eis que chegou a vez da Comunidade Cultura e Arte [CCA] recordar o “Bob Dylan português” e descobrir a razão pela qual se está perante um dos maiores arranjadores e compositores nacionais.
Foi em 1972 que Jorge Manuel de Abreu Palma, nascido a 1950, se lançou a solo com o single “The Nine Billion Names of God” em inglês, pelo selo da editora portuense Orpheu. O nome do single remete para o conto homónimo de ficção científica de Arthur C. Clarke, de 1953, mas antes Jorge Palma já havia tocado nos Black Boys (a sua primeira banda) e passado pelos Sindicato, grupo que integrou ao lado de Rão Kyao e muitos outros artistas do rock nacional da altura. Segundo João Carlos Callixto, “o facto dos Sindicato terem de coordenar uma série tão diferente de sonoridades inspirará Palma a trabalhar como arranjador, carreira que o ajudará a sobreviver durante parte da década de setenta, ao regressar, depois do 25 de Abril, de uma estadia de um ano na Dinamarca para evitar a chamada à guerra colonial.” Depois da experiência do primeiro single cantado na língua das terras do Tio Sam, Palma começa a ter vontade de experimentar compor na língua portuguesa, muito por influência dos primeiros discos de Sérgio Godinho e José Mário Branco. É, então, numa conversa de café em Lisboa que o próprio Fernando Tordo lhe passa o número de Ary dos Santos para o auxiliar e orientar no quesito das letras, na língua materna. Ary aceita o repto de colaborar com Palma e dar-lhe orientações para começar a escrever as suas próprias letras em português e é, dessa forma, que nasce o primeiro EP, “A Última Canção”, com duas músicas com letras suas, no lado A, e outras duas músicas com composição de Jorge Palma mas, desta feita, com letras de Ary dos Santos, no lado B.
O EP “A Última Canção” foi lançado em 1973 pelo selo da editora Zip Zip, um ano antes do 25 de Abril, quando Jorge Palma tinha 23 anos. Na altura, a obrigatoriedade do serviço militar era uma realidade aliada a outra ainda muito mais séria — a guerra do ultramar. O músico não queria lutar e era antagónico à realidade do serviço militar. Tendo isso em conta começou, então, o seu exílio político em fins de 1973, na Dinamarca. Ainda em Copenhaga, começa a compor aquele que seria o seu primeiro longa duração, todo em português. Dá-se a Revolução dos Cravos, em Abril de 1974, e o músico regressa a Portugal. É nesse contexto histórico que lança o álbum “Com uma Viagem na Palma da Mão”, pela Valentim de Carvalho, em 1975. É também por essa época, mas logo a partir do momento em que regressa do exílio, que começa a ceder e assinar arranjos para vários artistas nacionais, o que o auxilia na subsistência. Arranjou, portanto, para artistas como Paco Bandeira, Pedro Barroso, Amália, Ruy Mingas, Manuela Bravo e Tonicha, entre outros mais. Foi também em 1975 que, curiosamente, participou no Festival da Canção com dois temas, “Pecado Capital” e “Viagem”, ficando em 7º e 8º lugares. “Pecado (do) Capital” resulta de uma co-autoria com Pedro Osório e foi interpretada num dueto com Fernando Girão e, “Viagem”, por sua vez, resulta de uma composição de Nuno Nazareth Fernandes com letra de Jorge Palma.
O tom do disco “Com uma viagem na palma da mão”, contudo, não é alheio ao contexto dos tempos da década de 70, em Portugal e no mundo. Aliás, não é alheio nem pelas letras, nem pelas composições. Tal torna-se visível, também, na capa, em que aparecem dois punhos fechados a medir forças, como que a simbolizar o clima polarizante de guerra fria. Segundo João Gentil, autor da imagem, “o que está nessa capa é uma recusa óbvia a todos os poderes que, naquela época, tentavam tomar conta de nós todos, explicitamente, entre outros, o bloco capitalista e o bloco dito comunista, na sua entediante fase de ” Guerra Fria”. Assim como fiz alusão à Igreja católica. Resumindo, nessa época nem o Jorge nem eu acreditávamos que alguma instituição fosse dona da Verdade. Eu continuo assim, o Jorge falará por ele.” Quanto à sonoridade, o álbum destaca-se, essencialmente, pela profusão experimental, jazzística, progressiva e até psicadélica. Há arrojo e há vontade de transgredir, inovar e ir mais além — o normal em quem começa a procurar a sua voz musical. Recordando que Jorge Palma já tinha experiência nos arranjos, pelo facto de os compor, até, para outros artistas, a mestria a esse nível não foi esquecida. Não só não foi esquecida como o álbum está bastante bem pensado na composição e sobreposição das linhas melódicas, nas harmonias entre os vários instrumentos, o que revela uma boa capacidade de direcção de orquestra.
Quanto às letras, já espelhavam inovação social e a capacidade lírico-narrativa de se contar uma história, até com personagens. O tema “Dizem que não sabiam quem era” é disso um exemplo. A letra da canção é sobre uma mulher [ou representante de várias mulheres] que era criticada e ostracizada por não corresponder ao padrão púdico no qual se encartava o género feminino e como tal se pagava caro: “Dizem que fazia amor com qualquer um/ E que se drogava/ Dizem que foi apanhada a ver o mar/ Com outra mulher/Dizem que foi encontrada morta/ Os pulsos cortados.” Mas há também a “Giselle” e a sua solidão, e a crítica a um país tradicional que impede e corta o pensamento, como em “Já Chega de Ilusões”: “Mãe/Para quê negar/Que a vida te desfez?/Não/Não vou cá ficar/Nem ser igual a ti/Eu não me afundo mais/Na vida que eu não quis/E vou tentar outro país/Já chega de ilusões/Estou farto de tradições/que nos impedem de pensar.”
O piano foi e é uma parte fulcral da sua obra e das suas composições, sempre presente desde o início. Foi aos 6 anos que a sua mãe o inscreveu na Academia Musical dos Amigos das Crianças, onde aprendeu a tocar piano. Aos oito, realizou a sua primeira audição para o Conservatório Nacional, tendo como professora Maria Fernanda Chichorro. A presença no conservatório marcaria, igualmente, a sua vida adulta pela conclusão do “Curso Geral de Piano” no “Conservatório Nacional”, em 1986, e a frequência do antigo Curso Superior de Piano do Conservatório Nacional. Ao mesmo tempo que ia aprendendo as bases teóricas da música e do instrumento, como pensá-lo, foi também ganhando interesse, desde a adolescência, em artistas de raiz popular como Bob Dylan (a sua grande influência), Led Zeppelin, passando por Crosby, Stills, Nash & Young e Leonard Cohen. Após a edição, em 1977, de “Té Já”, o segundo disco que viu nascer a versão original de “Bairro do Amor”, esses artistas foram-lhe essenciais, uma vez que começou a tocar versões de grandes temas do cancioneiro americano, à guitarra, nas ruas de várias cidades europeias, nomeadamente espanholas e francesas. Logo aqui, vemos uma mistura que sempre caracterizou, sonoramente, Jorge Palma — o lado de conservatório do piano (teoria essa que lhe deu valências para uma profusão rítmica mais complexa e requintada tanto para os arranjos como para o puro jazz que o acompanhou sempre, também); a rebeldia do blues/folk da guitarra e o lado de contador de histórias como “Jeremias, o Fora da Lei” o demonstra. Tudo isto sem descurar um lado íntimo e sensível, tanto no piano, como nas letras, capaz de fazer a catarse de sentimentos mais profundos como quem toca, diretamente e sem pudor, na artéria quase a romper.
Sucederam-se, depois, vários outros álbuns, numa muito profícua década de 80, que deram a conhecer os seus maiores clássicos tais como, “Na Terra dos Sonhos”, “Frágil” (com duas versões no mesmo álbum), “Jeremias, o Fora da Lei”, “Estrela do Mar” (a música mais perfeita) ou “Deixa-me Rir”. Por ordem cronológica, depois do álbum “Té Já” seguiram-se “Qualquer Coisa Pá Música”, de 1979; “Acto Contínuo”, de 1982; “Asas e Penas”, de 1984; o essencial “O Lado Errado da Noite”, de 1985; “Quarto Minguante”, de 1986; e “Bairro do Amor”, de 1989.
O álbum “Só”, de 1991, foi particular e um dos mais especiais de Palma porque, todo ele, foi interpretado, somente, ao piano, por indicação de Tozé Brito. E foi, de facto, tão particular que mereceu uma revisitação e celebração própria em 2016, 25 anos depois, com concertos no CCB, em Lisboa, e na Casa da Música, no Porto. Em primeiro lugar, mesmo já tendo lançado um vasto leque de álbuns com grande parte dos seus clássicos, Jorge Palma não era, na altura, dos maiores vendedores de discos, ou seja, dos mais rentáveis. Havia, portanto, logo à partida, um problema económico a superar para a realização de um novo álbum. Como o orçamento era muito curto, gravar com uma orquestra estava fora de questão. É, então, que Tozé Brito surge com a ideia de se gravar um disco com as melhores canções de Jorge Palma, só ao piano, tal como se fosse um recital. O artista aceita o desafio e faz uma selecção de 15 músicas suas, passando por “Frágil”, “Deixa-me Rir”, “Só”, “Estrela do Mar”, “Jeremias, O Fora-da-Lei”, “Bairro do Amor” e “Terra dos Sonhos”, entre outros temas essenciais.
Contando com a ajuda do engenheiro de som José Manuel Fortes, que Palma conhecia desde a altura em que fazia arranjos para outros artistas, e o produtor Francis, ex-guitarrista dos Xutos & Pontapés, o músico só fez uma exigência — se era para ser gravado ao piano, então tinha de ser num piano de excelência. A editora aceitou essa exigência e alugou-lhe um Steinway de concerto. Sobre isso mesmo, Jorge Palma confidenciou ao Observador, num artigo de Rita Garcia que retrata toda a história da gravação de “Só”, o seguinte: “quando se chega ao pé daquele bicho é como se fôssemos um condutor que gosta de guiar e está habituado a um Volkswagen, a quem dão a possibilidade de conduzir um Ferrari ou um Bentley. No Conservatório, não havia nada daquilo e eu, que não sou um concertista, nunca tinha tocado num bicho daquela envergadura”. O orçamento era pouco, não havia orquestra e, à data, Jorge Palma não era dos artistas mais rentáveis, mas “Só” transformou-se num dos discos mais essenciais e especiais de toda a sua discografia. O sucesso de “Só” não foi imediato, mas o reconhecimento devido tem-lhe sido feito ao longo do tempo e, a verdade, é que até hoje continua a ser um trabalho bastante aclamado pela crítica e bastante acarinhado pelos fãs.
Depois de “Só”, a década de 90 foi marcada por colaborações com outros artistas. Reuniu o Palma’s Gang com Kalu e Zé Pedro, dos Xutos e Pontapés, e Flak e Alex, dos Rádio Macau — união da qual resultou o disco “Palma’s Gang ao Vivo no Johnny Guitar”. Rio Grande, que integrou juntamente com Tim, Vitorino, Rui Veloso, João Gil e João Monge, surgiu em 1996 e, ainda hoje, Portugal recorda os versos, “um abraço deste que tanto vos quer/Sou capaz de ir aí pelo Natal”, do tema Postal dos Correios, que mais não é do que uma carta que alguém envia aos pais a saber novidades da terra que o viu nascer ,mas da qual partiu à procura de condições de vida melhores: um retrato da sociedade emigrante portuguesa, portanto. Nesse mesmo ano, tem as suas experiências no teatro, ao musicar poemas de Regina Magalhães, integrados na peça “Lux in Tenebris”, de Bertolt Brecht. Tem, também, uma parceria com Sérgio Godinho, João Peste, Rui Reininho e Al Berto no espectáculo “Filhos de Rimbaud”, apresentado nos Coliseu dos Recreios. O espetáculo deu-se, apenas, um ano antes da morte de Al Berto, em 1997. Sobre “Os Filhos de Rimbaud”, como o Observador relembra num artigo que é dedicado ao poeta, Al Berto diria o seguinte: “(…) Quando li o poema, no Coliseu, em Novembro de 1996, estive a anunciar a minha morte sem que as pessoas o soubessem. Talvez seja um privilégio um poeta anunciar a sua morte. Durante 15 dias vivi nessa expectativa do fim. Todos os dias morremos muitas vezes: as perdas, os erros, aquilo que arrumamos dentro de nós… Seria ideal atingir o momento da morte com uma grande serenidade. Yourcenar disse que queria morrer de olhos abertos e atenta. O mesmo digo eu.” Este excerto encontra-se na biografia de Al Berto, “Eis-me Acordado Muito Tempo depois de Mim”, publicada em 2006 por Golgona Anghel.
Os tempos que se seguiram foram, para Jorge Palma, de reedições de novas coletâneas, parcerias e muitos concertos, até que regressa com um aclamado novo álbum de originais, em 2001, “É Proibido Fumar”. Curiosamente, tem o mesmo título do terceiro álbum de Roberto Carlos. Trata-se do seu primeiro álbum de originais após “Bairro do Amor”, ou seja, surge após um interregno de 12 anos. Havia, portanto, muita expectativa que, aliás, foi muito bem correspondida. Depois de ter passado pelos Cabeça no Ar (com Rui Veloso, Tim e João Gil), grava o álbum “Norte”, em 2004, no Porto. Em 2007 segue-se “Voo Nocturno”, com o badalado tema “Encosta-te a mim”, e segue-se “Com todo o Respeito”, em 2011.
Após uma vida de excessos que, aliás, não esconde, Jorge Palma sempre carregou uma aura beatnik que vai buscar influências à trindade Ginsberg, Kerouac e Burroughs. Trindade essa que, aliás, muito inspirou, também, Hunter S. Thompson, o pai do Jornalismo Gonzo. É um perfeito imperfeito, passe-se o cliché, porque não gosta da perfeição sem desconstrução. Como é seu apanágio dizer, desde que a música flua e seja sentida, é o que importa. Tozé Brito diz que uma das receitas para se saber se uma música ganha ao tempo é, mesmo, perceber se se adapta só à guitarra ou ao piano. Como tal, as músicas do Jorge Palma passam todas esse teste. Além disso, no entanto, quem ouve as suas músicas não pode deixar de perceber como há toda uma profusão que não se esgota, o entendimento de como as harmonias funcionam e se encaixam (o que resulta em arranjos que ficaram para sempre na história da música nacional), e como o que ouvimos é tudo menos quadrado. Em 2015, lançou o álbum “Juntos”, resultado do concerto que Jorge Palma e Sergio Godinho deram em conjunto no Theatro Circo, em Braga. Um álbum a registar, uma vez que junta duas das maiores figuras do panorama nacional. Em 2020, celebrou 70 voltas ao sol com um ensemble de 14 elementos, dirigidos pelo maestro Cesário Costa, com arranjos dos pianistas e compositores Filipe Melo e Filipe Raposo — voltou a trabalhar com orquestra — e recebeu o reconhecimento do Presidente da República. Justo para um letrista de poesias e histórias, com a escola de Ary, que soube e sabe bem descrever a condição humana: “Só por existir/Só por duvidar/Tenho duas almas em guerra/E sei que nenhuma vai ganhar.”