‘Une nouvelle amie’, a contribuição de Ozon para o debate sobre a identidade de género
Realizador das fortes temáticas, François Ozon agarra em elementos voláteis e com uma simplicidade aprazível de processos constrói um filme marcante, com tanto de delicado como de excêntrico, de cómico e dramático. É este o equilíbrio encontrado pelo realizador e um limiar pisado na perfeição pela interpretação de Romain Duris, merecendo sobre si as luzes que há meses recaíram também sobre Eddy Redmayne em The Danish Girl e que culminaram numa nomeação ao Oscar.
Numa sequência inicial de magistral orquestração de storytelling iniciada num funeral, François Ozon dá-nos a conhecer Laura (Isild le Besco) e Claire (Anais Demoustier), duas amigas de infância que se encontram já na fase adulta, casadas. Sempre se tiveram uma à outra, mas Claire viveu na sombra da beleza de Laura que tinha em si as luzes da ribalta e a atenção primária dos rapazes. É com pano de fundo sobre a morte de Laura que a narrativa se desevolve para as diferentes formas de lidar com o luto, mas sobretudo para o seu tema primário, a identidade de género.
Claire, de luto, visita David de surpresa, agora viúvo e pai de uma menina. O que encontra é antes David de peruca e maquilhado, e um homem que se sente realmente completo quando se veste de mulher, coisa que evitava mostrar ao público quando era casado por acordo entre o casal. De sozinha e sem amparo da amiga de sempre, Claire descobre em David – a quem começa a tratar por Virgínia – a amiga que perdeu, a companhia nas compras que tanto lhe fazia falta, e alguém com quem volta a divertir-se.
Esta história vagamente baseada numa short-story de Ruth Rendell podia ter tomado vários rumos mas Ozon traça-lhe um caminho próprio, um caminho audaz como de resto tem feito em toda a sua obra cinematográfica desde Swimming Pool a Dans la maison. É esse caminho que o torna num dos cineastas mais refrescantes do cinema francês e europeu e a sua capacidade para fracturar com qualidade que o fará perdurar.
Com graça – e graciosidade – o filme cresce em nós, alternando entre a comédia e o drama, navegando assim por vários estilos como Ozon tem feito – com mestria – ao longo da sua ainda curta carreira e como a própria banda sonora nos faz questão de indicar trazendo sem rodeios Katy Perry com “Hot n’ Cold” (nada mais apropriado). Imagem de marca de um realizador que em Jeune et Jolie não tinha já quaisquer problemas em alternar entre Françoise Hardy e Crystal Castles ou M83.
Une nouvelle amie é uma contribuição certeira para o cinema e para a identidade de género que, com humor, o filme se presta a abordar. O cinema é voz de debate e esta é a mensagem de François Ozon. Uma mensagem que ganhou forma e impulso após os protestos anti-casamento gay que se fizeram sentir por França.