“Unraveled”, de Maxine Bédat: o sacrifício humano e ambiental por umas calças de ganga

por Pedro Fernandes,    2 Fevereiro, 2022
“Unraveled”, de Maxine Bédat: o sacrifício humano e ambiental por umas calças de ganga
Capa do livro
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Em Unraveled: the life and death of a garment, Maxine Bédat convida o leitor a seguir os seus passos numa viagem onde a protagonista são umas calças de ganga. Maxine é Diretora Executiva da New Standard Institute. Antes disso cofundou a marca de moda Zady com propósitos éticos. É formada em direito, ciência política e económica e exerceu como advogada. Este seu livro ganhou especial atenção depois de ter sido incluído na lista de melhores livros de negócios do ano de 2021, elaborada anualmente pelo Financial Times e a McKinsey, uma das mais respeitadas listas dentro da área.

É muito provável que o leitor tenha ou já tenha tido calças de ganga no seu armário, provavelmente várias… e muitas durante todo uma vida. Mas saberá o leitor como estas são produzidas? E se o soubesse, deixaria de comprar?  Veremos o que pensará o leitor no final deste texto. 

Foi durante o processo de criação da sua marca de moda que Maxine enveredou na viagem que ganhou forma de livro. Foi nesse momento que começou a explorar o mundo da moda com profundidade, investigando onde as roupas são produzidas e de onde vêm os materiais. Preocupada com o mundo, decidiu meter num livro tudo o que aprendeu e que merece ser denunciado e conhecido por qualquer pessoa. 

A história das calças de ganga começa nos Estados Unidos, mais propriamente numa quinta do Texas, onde se produzem toneladas de algodão. Os EUA são os terceiros produtores mundiais de algodão, depois de China e India. Como sabemos, o algodão é fundamental para a produção de calças de ganga e de outras peças de roupa. O surpreendente (pela negativa) é que tamanha tarefa de produzir este algodão significa enormes riscos para o ser humano e o ambiente: os químicos usados estão entre os mais perigosos. Nem o planeta nem o nosso corpo está preparado para suportar o tipo e quantidades de químicos usados neste tipo plantação. Maxine menciona que conheceu um senhor que teve cancro após anos de exposição a estes químicos. O filho desse senhor refere a indústria agrícola como “viciada em drogas”, ou seja, o uso extensivo de químicos sintéticos, ervas daninhas e pragas.

Maxine Bédat / DR

O seguinte episódio passa por uma fábrica de produção têxtil na China, conhecida como a “fábrica do mundo”. Estas fábricas utilizam imensa energia pelas máquinas gigantes que têm. O processo que chamou a atenção de Maxine foi o tingimento das roupas, ou seja, aplicar corantes ou pigmentos nos tecidos para que estes ganhem cor. Estes contêm químicos e, ao contrário daqueles mencionados no algodão, ficam na roupa e em contacto com o nosso corpo. Há ainda um processo de lavar a ganga com ácido o que afeta os pulmões de quem o inala repetidamente. E se isto não fosse pouco, há ainda água poluída que acaba nos rios… e caso entre em contacto com a pele de alguém, pode causar doenças.

Outro aspeto chocante das fábricas destes países de salários baixos é a maneira chocante como as pessoas trabalham. Falamos de pessoas que têm de se submeter a um trabalho robótico, repetindo durante todo o dia, toda a semana, os mesmos exercícios para ganharem um salário muito, muito baixo. Algumas destas pessoas desistiram já dos seus sonhos individuais, trabalham apenas para tentarem dar um futuro melhor para os filhos, privando-se assim dos seus próprios objetivos de vida.

E onde vão acabar as nossas calças de ganga protagonistas do livro? Em aterros cheios de roupa em países africanos… causando gases com efeito estufa. Há ainda mercados de segunda mão, para os quais as roupas são transportadas na cabeça de pessoas como os Kayayei.

Antes de acabar o livro, a autora sugere ainda uma lista de ações que podem ser levadas a cabo desde já para melhorar esta história de terror. Começando por nós consumidores. Fica a sugestão ao leitor de utilizar a filosofia mottainai nas suas decisões de compra para evitar o desperdício. Quanto menos roupa comprarmos melhor. Por isso, devemos pensar não no custo da peça, mas no custo por utilização da mesma. Uma peça que dure vários anos é em geral melhor do que uma que se gasta em 1 ano e tem que ser substituída rapidamente. É ainda preciso maior transparência no processo produtivo e a implementação de leis que protejam as pessoas envolvidas neste trabalho. Já há pessoas que preferem pagar um pouco mais se souberem que os trabalhadores têm condições dignas de trabalho.

Maxine fez um grande trabalho ao juntar narrativa e dados ao longo desta história cujo protagonista são umas calças de ganga. No entanto, falha ao cair na tentação de por vezes recorrer a alguns ataques populistas contra algumas empresas e empresários concretos. Percebe-se a frustração e a indignação pelas desigualdades, mas a indústria da moda é incrivelmente complexa. Por outro lado, as leis devem ser revistas em alguns países para protegerem os trabalhadores de condições indignas. Isto é um problema de todos nós. Alguns capítulos podiam ter sido melhor explorados, sobretudo na segunda metade do livro. A autora foi buscar vários dados para complementar a história, mas por vezes nem menciona em que ano aquilo foi medido, a relação entre texto e números poderia ter sido melhor, embora não seja má. 

O presente relato não é exaustivo, no sentido de representar na totalidade a indústria da moda. Nem todas as roupas são feitas desta maneira, nem todas as marcas são más e culpadas. O ponto do livro, como eu o interpretei, é sobretudo o de despertar a consciência de todos nós consumidores de roupa. É uma denuncia corajosa de algo que custa a acreditar e não podemos permitir de nenhuma maneira que o ser humano e o ambiente sofram estes golpes por este tipo de motivação. Como defende a autora, não há moda sustentável, apenas moda mais ou menos impactante no ambiente.

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