Vardan Hovanissian e Emre Gültekin ao vivo: como a música pode unir duas nações
Numa noite marcada por desenvolvimentos na situação de tensão que se vive no Médio Oriente, no palco do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian assistiu-se a uma espécie de sanação de um outro genocídio através de um dos meios que mais tende a unir diferentes culturas: a música. Vardan Hovanissian e Emre Gültekin são virtuosos do duduk arménio e do saz turco, respectivamente. Através da sua colaboração artística, pretendem estabelecer uma ponte entre os dois povos ao recuperar melodias e danças clássicas do folclore da Arménia e da Turquia, assim como compor novas peças que olhem para um futuro pacífico, sem deixar de reconhecer o doloroso passado.
Entre 1915 e 1916, no ápice da Primeira Guerra Mundial, um Império Otomano em declínio perpetrou uma série de deportações, aprisionamentos e assassinatos contra o povo arménio que vivia na região leste da Anatólia. Estima-se que até 1 milhão e meio de arménios tenham perdido a vida nesta acção, que é, historicamente, considerada um genocídio. A relação entre turcos e arménios no seio do Império Otomano sempre foi tensa, algo este evento veio definitivamente cimentar. O próprio avô de Vardan Hovanissian foi um dos sobreviventes da deportação forçada dos arménios, tendo nascido na cidade actualmente conhecida como Erzurum, cujo nome arménio original era Karin, palavra usada por Hovanissian e Gültekin para apelidar o seu segundo álbum lançado em conjunto, em 2018.
Mais de 100 anos depois, encontrámos estes dois artistas juntos em palco, numa noite que evocou uma sensação de pacifismo e a possibilidade de um mundo melhor através de canções esperançosas e reconfortantes. A vibração das cordas do saz — que na verdade é uma descrição genérica para uma família de instrumentos de cordas da região que inclui a Turquia e a Arménia — transportava-nos para uma época medieval, mas que na verdade acaba por ter um timbre intemporal. Se a isso juntarmos o doce tom do duduk, que nas suas notas trazia ecos de pássaros ou de uma leve brisa, obtemos música que ambiciona transcender a simples soma das suas partes.
A primeira peça tocada foi “Havun Havun”, a melodia da ressurreição escrita pelo poeta espiritual arménio do século X, Grigor Narekatsi. Logo aí entendemos que estamos a lidar com uma tradição musical literalmente milenar, trazida para os dias de hoje pelas mãos hábeis dos dois artistas. Saltitando entre diferentes regiões e épocas, o concerto representa na perfeição a histórica falta de fronteiras na partilha de histórias, músicas e instrumentos, comuns aos actuais países que aí se definiram. Por exemplo, os artistas apresentaram a sua versão de “Vard Siretsi”, uma das diferentes rendições de Sari Gelin. Essa é uma colecção de canções de folclore provenientes de diferentes regiões, mas que utilizam a mesma melodia e temas semelhantes — esta fala sobre uma “noiva loura”, como nos conta Emre Gültekin numa das suas várias intervenções destinadas a dar-nos mais contexto sobre a actuação. “Vocês podem imaginar o resto”, diz-nos, estimulando as nossas mentes a viajar até ao Cáucaso ou à Anatólia.
Outra das tradições honradas no concerto é a dos ashiks, trovadores vagantes que, como nos conta Emre, não conhecem teoria musical, mas aprendem a arte dos instrumentos de cordas, nomeadamente o saz, para acompanhar os seus poemas escritos numa estrutura específica. Os ashiks contribuem para a preservação da cultura oral turca, arménia ou azerbaijana, enriquecendo aquele que já é um riquíssimo património musical e literário. Esta parte revela-se, claramente, uma homenagem a Lütfü, o pai de Emre Gültekin, ele próprio um dos líderes da tradição ashik na Anatólia.
Apesar de o programa de sala conter um alinhamento, rapidamente entendemos que o concerto não se cingirá ao que está impresso. “Isto acontece em concertos de folklore”, brinca Emre, o que nos agrada, pois traz uma sensação de imprevisibilidade bem vinda. A melhor surpresa de todas chegou já perto do final, quando Malabika Brahma Gültekin emerge da fila da frente do público e sobe ao palco para se juntar ao marido e a Vardan em palco. É apresentada por Emre não só como sua “amante” — no sentido mais pleno da palavra, de quem ama — mas também como uma excelente cantora, como pudemos comprovar logo de seguida. Cantando em bangla, mas ainda assim acompanhada pelos instrumentos do Cáucaso e arredores, de repente estendeu-se uma ponte ainda mais longínqua a partir daquele palco, até à Índia, numa mistura de culturas inusitada que, no fim de contas, fez todo o sentido.
Para esse belo final, acompanhado a palmas de difícil sincronização, a produção tomou a fabulosa decisão de abrir as cortinas por detrás dos artistas. Para além da óbvia beleza da verdura do oásis que é o jardim da Fundação Gulbenkian, a abertura do auditório ao mundo exterior acabou por simbolizar algo ainda maior. Tomara que tudo fosse tão fácil como a simples partilha do que nos aproxima e assemelha entre nós, mas são concertos como estes que nos redobram a esperança em vindouras reconciliações.