Variações celebra-se ontem, hoje, amanhã e sempre
No rescaldo de um colóquio com “Variações sobre António”, organizado por estudantes de doutoramentos – Materialidades da Literatura e Estudos Artísticos – da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e que se sucedeu nos dias 7 e 8 de dezembro de 2017, dou por mim a pensar na figura mitificada de António Variações. Um vulto imenso, pelo qual basta uma fotografia para que uma reação sui generis surja da parte de quem o observa. Isto para quem não o conhece.
Para quem o conhece, ou o vai conhecendo, através daquilo que escreveu e entoou, sabe bem com o que pode contar, quando a conversa ou uma dada abordagem vai ter com este nome. De origens minhotas, e cabeleireiro de profissão, foi Variações um exemplo singular, que foi crescendo em plena fase ditatorial. Como todos da sua geração, foi à tropa, mas não se ficou por essas viagens na sua vida. Para lá da militarizada e beligerante Angola, passou por Amesterdão e Nova Iorque. Raízes, deixou-as em Lisboa, cidade na qual expressaria o seu êxodo das diretrizes conservadoras de uma sociedade ainda a adaptar-se à nova realidade democrática.
Também na cultura, para lá da normalizada e da intervencionista, foi uma lufada de um pensamento fresco, contraposto às normativas daqueles que também se regulamentavam no confronto, no choque, e na própria inovação. Um rosto diferenciado, denotado pelo arrojo, e pela necessidade de gerar uma novidade, um golpe de expressão de uma identidade própria, destacável das demais. Não por manigância ou arrogância, mas por se sintonizar com aquilo que era a sua realidade, a sua perceção e a sua perspetiva íntima para com os demais agentes de uma vida que se delimitou durante quatro décadas.
É nesse composto de identidade que surge como alguém disruptivo, capaz de confrontar as dúvidas inerentes à legitimidade de uma orientação sexual diferente da pré-concebida, que era origem de críticas de delírio ou de devassa. Muito mudou com a emergência repentina de Variações, que conquistou públicos com uma gradual demonstração do seu talento, e que criou condições para a própria edição de dois álbuns. Seriam poucos em número, mas com uma qualidade demonstrativa do mito que foi gerado há mais de 30 anos atrás, quando partiu, em 1984, vítima de HIV.
Para lá das proporções que autenticaram e reconheceram a existência de mundividências e de orientações diferentes do comumente assumido até então, Variações escrevia como poucos. Adaptou músicas de Amália Rodrigues, como fã inveterado do fado, e como um fiel louvador do trabalho desta. Para além disso, bebeu da poesia de Fernando Pessoa para a composição das suas músicas, para a criação de uma personalidade que, apesar de não fragmentada, foi questionando o mundo, de forma subtil e delicada. Seguiu dotado de uma voz que se notabilizou pelo diferente heterogéneo, conciliando e comungando no lancinar rasgado do agudo, e na harmonia vivida do grave, deambulando entre géneros e toadas.
Estou bem aonde não estou, porque eu só quero ir aonde eu não fui. A nossa eterna expectativa pelo futuro. A nossa perpétua felicidade na inexistência existencial e existencialista. A nossa aspiração num vazio que se preenche na música, e que se requinta com uma imagem única, singular, proporcionada pelo semblante de Variações. Muda de vida se tu não vives satisfeito, muda de vida, estás sempre a tempo de mudar. A oportunidade de mudar o rumo dos acontecimentos, o rumo daquilo que é o predefinido, o configurado. A margem para algo e alguém mudar, para lá dos pergaminhos nos quais subsistem as raízes de vários arcaísmos dos nossos comportamentos, das nossas posturas.
Quando a cabeça não tem juízo, quando te esforças mais do que é preciso, o corpo é que paga. Excedemo-nos em certas ocasiões, para lá daquilo que devíamos. Tanto, que a racionalidade se perde e se evade por aí, para o desconhecido, para o inominável e estranhado. Porque é o corpo a nossa ferramenta para a atividade vital, para aquilo que é o nosso modesto, mas valoroso contributo neste mundo, que se reforça e se emancipa numa mescla única de princípios, votos e desejos. É p’ra amanhã, bem podias viver hoje, porque amanhã sei que voltas a adiar. A costume procrastinação daquilo que especulamos para a nossa vida. Vamos adiando, por pretextos vários, de ordens diversas. Entretanto, os dias passam, e as questões mais básicas e elementares de uma história daquilo que é a vida de cada um permanecem com pouco para ser contado. É neste segmento que convém que o que seja para amanhã, só possa, efetivamente, ser feito amanhã.
O engate. Quando dois estão livres, e uma noite há por se passar, e onde o tempo é pouco naquilo que é a mais bela união experienciada pelo ser humano. O requinte de amar e ser amado, de dar e receber. Uma espontaneidade que se amplifica no mais puro, nos desejos mais delicados e elencados na poesia, na literatura, no cinema, na arte. O amor, o amar. A vida, o viver. A dor, o doer. Tudo isto não escapa às subtilezas de um anacronismo urgente, perante o reumatismo de valores de um país preso às contingências sociopolíticas, que achou que a alteração só se tomava nas Constituições e nas prisões.
Variações foi assim, variou ações. Variou em seu desvario, pelo louvor folclórico do Minho, por onde nasceu, e aprofundou (a ausência d)os seus limites pelas cidades que calcorreou fora dos limites nacionais. Grande demais para um país a necessitar de um confronto musical e artístico, partiu à boa maneira meteórica. Como Hendrix e Joplin, como James Dean, como Sylvia Plath, como Jean-Michel Basquiat. Todos eles capazes de fazer estremecer as polaridades pré-concebidas da própria arte, da própria cultura, e, por conseguinte, das próprias realidades nacionais e internacionais.
A música foi a proporção da sua indumentária: uma tomada multifacetada do ser e do viver, do incorporar de uma fragrância variada, diversificada, num ser único e unificado. António Variações congrega, ainda hoje, um lastro destinado a contar as estrelas, enquanto o corpo dança com estas, e pronuncia os versos compostos por este músico, enquanto também ele recitava as próprias estrelas. Para além de recitá-las, espelhava-as, em si, no âmago da sua identidade, no fidelizar da sua eternidade. São estas as variações que celebramos ontem, hoje, amanhã e sempre.