“Vernon Subutex 1”, ou como a música acompanha o submundo parisiense
Em cidades como Lisboa, ainda para mais num momento em que a pressão imobiliária aumenta a cada dia o número de despejos, cruzamo-nos diariamente com um sem número de sem-abrigo a dormir pelas ruas. Já mal os vemos, até, habituados que fomos a olhá-los como “outros”, pessoas numa situação na qual é impossível cairmos. Apesar da proximidade física, estão-nos de tal forma distantes que nunca sequer imaginamos que também a nós nos possa calhar tal destino.
Como tal, também Vernon Subutex, personagem-título do livro de Virginie Despentes, escritora e realizadora francesa muito ligada ao feminismo e ao submundo erótico e pornográfico, cujo primeiro volume é agora publicado em português pela Elsinore, é surpreendido quando, não sendo capaz de pagar a sua renda já por alguns meses, é posto na rua, trazendo consigo apenas a mala onde é capaz de guardar o que lhe estava à mão.
Vernon fora, durante largos anos, dono de uma loja de discos em Paris, após não ter singrado no mundo da música. Quando, a certa altura, a loja se torna incapaz de ser sustentável, Vernon vê-se obrigado a fechá-la e a viver do recheio, que vai vendendo online, ou do dinheiro que lhe vai sendo dado pelo seu único companheiro de tempos idos que fora capaz de singrar, Alex Bleach. Com a sua voz de crooner e o seu ar gingão, Alex tornara-se uma superestrela incapaz de lidar com a fama, e é precisamente quando sabe da sua morte, vítima de uma provável overdose num quarto de hotel, que Vernon é expulso de casa. Na mala, traz consigo as cassetes de uma auto-entrevista que Alex fizera a si próprio na casa de Vernon, numa das poucas vezes em que, nos últimos tempos, se haviam encontrado.
Sem casa onde dormir, Vernon vai contactando uma miríade de amizades antigas ou ex-namoradas, com a desculpa de estar em Paris em visita de Toronto (na qual ninguém acredita), e é ao longo do carrossel de casas onde Vernon vai sendo acolhido (e do rasto que vai deixando atrás de si) que vamos tendo um retrato do submundo da sociedade parisiense: os machistas, os fachos, os elitistas, o tipo que bate na mulher mesmo dizendo que a ama, o mundo da música e do cinema, mas também o submundo do sexo pelo qual Despentes se havia motorizado anteriormente, o das estrelas pornográficas e dos transsexuais. Vernon é o estranho camaleão que por todos estes meios se vai movendo, o cinquentão com um ar meio-vagabundo que mantém, ainda assim, charme suficiente para ser acolhido em tantos sítios diferentes.
Nesta viagem por tantos apartamentos, todos vão conhecendo Alex Bleach, desde os que foram também amigos dele e lhe desenvolveram um ódio de estimação, aos que o têm como ídolo bonacheirão. Intercala-se com a história de Vernon, portanto, uma busca pelas cassetes da tal auto-entrevista de Alex que Vernon trouxe consigo, e é nesta narrativa pejada de referências musicais (é constante o name-dropping de músicas e bandas), que se revela aquilo que o livro de Despentes tem de melhor: a sua profunda humanidade com as personagens que marcam presença. Mesmo aquelas que piores comportamentos e pensamentos adoptam são, em certos momentos, capazes de boas acções. São, aliás, provavelmente das poucas que não têm segundas intenções em receber Vernon. É a sua frustração que alimenta o discurso de ódio em que tantas vezes incidem, e, apesar das constantes declarações xenófobas e islamofóbicas ou das visões redutoras da mulher, nenhum dos personagens que as adopta é apenas encerrado nessas declarações. Revelando-se os comportamentos acima de tudo enquanto respostas de libertação face a outras problemas que assolam as suas vidas, nunca são desculpados.
Despentes deixa o leitor retirar as suas próprias conclusões, e não se pode dizer que se esteja a movimentar em terreno fácil. Porque, sendo verdade que um livro tem de ter extremo cuidado com o perigo de, ao representar personagens pejadas de ódio e capazes de acções vis e socialmente condenáveis, motivar o comportamento ou espalhar o discurso de ódio que com ele vem associado, a autora, também pela sua reconhecida posição feminista e igualitária, consegue confrontar-nos com esta realidade sem nunca deixar de marcar bem claro, sub-repticiamente, o facto de condenar essas posições. Mas elas existem e é impossível fugir delas numa sociedade como a parisiense. Não apenas ao nível étnico-religioso, mas profundamente enraizado face aos sem-abrigo. E, mesmo quando algumas pessoas te tentam ajudar,
“Quando estás no lado dos pestilentos, há uma clara fractura que separa o teu mundo dos poupados. Não queres nem caridade, nem empatia. No fundo, preferes não voltar a ter qualquer tipo de contacto. As palavras já não significam o mesmo de cada lado da fronteira.”
A fractura, tão exposta a quem dela é vítima, segue coberta para a generalidade das pessoas, e acabam por ser os que, imersos em ódio, partilham uma condição de exclusão, a ser capazes de a reconhecer.
Não podem deixar de ser referidas algumas estranhas decisões de tradução, como o híbrido francês-português, Praça d’Italie, que, seguindo a lógica usada mais à frente para traduzir Champs-Elysées para Campos Elísios, e Jardin du Luxembourg para Jardim do Luxemburgo, deveria ser traduzido para Praça de Itália (ou mantido no original Place d’Italie). Mas, essencialmente, o que perturba é a quantidade de falhas, gramaticais e até acentos em falta, em tal número que não pode deixar de ser questionado também o trabalho de revisão. Erros que mancham um livro que se torna de leitura praticamente obrigatória para entender, até, a situação actual de Paris, metrópole de brutos contrastes. Muito se esconde no seu submundo.