Viet Thanh Nguyen: a Guerra do Vietname e a oposição de perspectivas
A Guerra do Vietname, como lhe chamam os Americanos, ou a Guerra dos Americanos, como lhe chamam os Vietnamitas, opôs o Vietname do Norte, apoiado fundamentalmente pela União Soviética e pela República Popular da China, ao Vietname do Sul, apoiado fundamentalmente pelos Estados Unidos da América, naquele que foi um dos conflitos das chamadas guerras indirectas durante a Guerra Fria. É nesse quadro geral da Guerra Fria que os americanos veêm a guerra, mas para os vietnamitas, o que se discutia ali, mais que o poder de russos ou americanos, era mesmo o futuro do seu país. Referências diferentes trazem perspectivas diferentes.
É neste contexto que O Simpatizante, vencedor do prémio Pulitzer para Ficção 2016, do escritor americano de origem vietnamita Viet Thanh Nguyen, nos chega, agora editado em português pela Elsinore, e contando-nos, na primeira pessoa e em forma de confissão para um comandante captor, a história de um agente duplo que, secretamente alinhado com o comunista Vietname do Norte e os Vietcongues, se faz passar por combatente do Vietname do Sul, onde desempenha o cargo de assistente de um general vietnamita que combate os vietcongues com a ajuda dos EUA. Após a queda de Saigão, capital do Vietname do Sul, último bastião da luta frente aos Vietcongues, o narrador foge, juntamente com tantos outros refugiados, para os EUA, onde se vê obrigado a começar uma vida nova.
O próprio autor foi um dos que veio para os EUA por causa do conflito, tendo chegado com 3 anos e tendo crescido na zona de San Jose, California. Com o intuito de contar a história daquelas que se viram obrigados a ir viver para um país para onde a grande maioria não queria ir, Nguyen põe-nos no centro desta dinâmica, expondo a forma como os EUA, país formado por colonizadores e refugiados, sente dificuldade em lidar com quem vem de fora e, ao mesmo tempo, a forma como quem vem de fora tem dificuldades em lidar com a sua nova situação. Neste expoente máximo do capitalismo, todos estes vietnamitas se viam confundidos com chineses, e viam-se, inevitavelmente, transformados. Tinham de fazer pela vida, implicando dedicar-se a ocupações diferentes:
“Um coronel, (…), era porteiro. Um major impetuoso que pilotava helicópteros de combate era agora mecânico. Um capitão encanecido com jeito para caçar guerrilheiros; cozinheiro. Um tenente desapaixonado, único sobrevivente da emboscada a uma companhia: distribuidor.”
Outros acabavam por sucumbir a essas transformações:
“Foi assim que soubemos do clã que foi transformado em trabalhadores escravos por um agricultor de Modesto, (…) da mulher de um político que foi despromovida à limpeza de arrastadeiras numa casa de repouso e que certo dia se passou dos carretos, atacou o marido com uma faca de cozinha e foi internada numa ala psiquiátrica, (…) e do budista devoto que espancou o jovem filho e foi preso por maus-tratos a menor em Houston, e do proprietário que aceitava senhas de refeição em troca de pauzinhos para comer e que foi multado por infringir a lei em San Jose (…)”
O narrador, mesmo tendo estado previamente a fazer os seus estudos universitários nos EUA, ou ainda mais devido a isso, sentia na mesma as influências americanas e ocidentais a penetrar dentro do seu ser, até por oposição às suas próprias convicções. Mas a sua tendência para uma certa ocidentalização podia provir também de outro facto: ser bastardo e mestiço, cruzamento entre uma mãe vietnamita e um pai francês que nunca o reconheceu, padre e missionário no Vietname onde, além de espalhar a mensagem do senhor, passou também a semente. Este seu próprio estatuto tornara-o alvo de descriminação entre os seus compatriotas vietnamitas ao longo de toda a sua vida, um representante daquilo que o colonialismo e o imperialismo trouxeram ao Vietname. Todas estas características, em conjunto com o facto de ser agente duplo, levam a que este narrador seja o agente, se não perfeito, bastante adequado a explorar aquilo que, mais que a própria trama da narrativa, O Simpatizante tem de mais interessante: a exploração por parte do autor das diferentes perspectivas em relação a algo que muitas vezes julgamos objectivo. É acima de tudo sobre esta relação entre pontos de vista que se debruça o livro, aproveitando bastante bem o papel de agente duplo do narrador para nos trazer a perspectiva de cada um dos diversos lados, não só do conflito, mas também da psique humana e da forma como, em grupo ou individualmente, acabamos por manipular o nosso ponto de vista sobre o ponto de vista dos outros. Neste caso, a nossa percepção ocidental (focada nos EUA) impede-nos de compreender que do outro lado de um conflito também se encontram humanos, e que esses humanos são tão permeáveis ao erro quanto nós somos. Ambos os lados do conflito sofrem com as atrocidades do outro lado, mas, acima de tudo, moldam a sua perspectiva no sentido de se ilibarem e de depositarem a culpa nos outros.
Levando-nos através da adaptação de alguém a uma cultura diferente da sua, por entre coca-colas e corrupção política, já que “é impossível viver entre as pessoas de um outro país e não ser transformado por elas” (ao ponto de nem os seus próprios companheiros o aceitarem de volta), são nos mostrados os mecanismos e as manigâncias feitas pela CIA para tentar reerguer e apoiar uma nova investida contra a agora República Socialista do Vietname. Para isso armavam os refugiados vietnamitas e tentavam coloca-los de novo no terreno, transformando-se, agora que iriam invadir o seu país comunista, em americanos. O protagonista é, portanto, obrigado a viver com os seus próprios fantasmas, inerentes a ter de obedecer ao lado que não apoia para poder passar informações ao outro lado, o seu. Mas Nguyen não nos deixa isolados com as críticas às acções dos EUA, não só a perspectiva de agente duplo, como os próprios factos do conflito, a mostrarem que a crueldade era inerente a ambas as partes, com ambos os lados a servirem de espelho um do outro.
É daí que parte a vontade de mostrar um conflito que, mesmo tendo sido vencido pelos vietnamitas, acaba por ser reescrito sempre na versão dos americanos, “a primeira guerra em que seriam os derrotados a escrever a história e não os vencedores.” Tal está inegavelmente relacionado com a indústria do cinema de Hollywood, num país onde não é necessário ministério da propaganda porque Hollywood já cumpre a sua função. Naquela que é, sem grandes dúvidas, a melhor secção do livro, o narrador, sempre com a pitada de humor e sarcasmo que preenche toda a obra, vai trabalhar como consultor para a realização de um filme de Hollywood de um dito Autor (claramente inspirado em Francis Ford Coppola e, consequentemente, em Apocalypse Now), sobre a guerra do Vietname.
Sendo a produção toda feita nas Filipinas, onde o narrador estava encarregue de ajudar com os figurantes vietnamitas que eram refugiados instalados no país, somos confrontados com todas as alterações e usurpações feitas pelo Autor a favor da narrativa mostrando sempre apenas a versão americana do conflito, os vietnamitas a terem direito a falas apenas quando o intuito é uma cena de violação feita por vietcongues. “Hollywood era muito mais eficaz ao imaginar os países que pretendia explorar”, e tirava as conclusões que queria em relação aos povos que retratava. Mesmo tendo perdido a guerra, através de filmes como este, a América passava a sua versão, a sua mensagem, e impedia a do outro lado de passar. Sempre foi esse, aliás, o intuito da guerra fria. Mesmo os povos que se veriam mal retratados, não sentiriam isso até se aperceberem que eram eles os alvos da pancada e da usurpação. “O importante era verem e adorarem uma história americana, até ao dia em que eles próprios fossem bombardeados pelos aviões que tinham visto nos filmes americanos.”
Num livro que acaba por sofrer a certas alturas com a mudança de estilo, principalmente no final, que parece algo separado do resto do livro, Viet Thanh Nguyen faz um trabalho importantíssimo de mostrar não só a vida de refugiado e de imigrante nos Estados Unidos da América, mas também de contrariar a visão inflexível do mesmo. “Se formos representados por outras pessoas, será que elas não podem um dia varrer a nossa morte do terreno escorregadio da memória?”, pergunta-se o narrador, e também Viet Thanh Nguyen, que espera impedir essa morte contribuindo com a sua representação para o estabelecimento desta memória comum.