Vodafone Paredes de Coura (dia 1): o destaque merecido da música portuguesa
Um dos mais míticos festivais portugueses, o Vodafone Paredes de Coura, está de volta. Este é um evento cuja história e ambiente praticamente equivalem em importância ao seu cartaz. Veja-se pela comunicação do festival, que exalta o regresso ao “Couraíso”, à convivência à beira do rio Taboão e às memórias musicais e sensações que muitos de nós já vivemos naquele recinto verdejante. A verdade é que, à chegada ao recinto, ao contemplarmos a envolvência natural e a harmonia do público com a mesma, é difícil não reconhecer o Vodafone Paredes de Coura como um evento de certa forma mágico.
Emblemático pelo menos é. Faz sentido então que, no seu regresso após três anos de interregno, o festival tenha escolhido um alinhamento alargado e estendido de artistas nacionais. A música portuguesa sempre fez grande parte da sua história, desde os seus primórdios de evento de entrada gratuita, com muitos nomes irreconhecíveis para os tempos que correm e outros clássicos, até tempos mais recentes, em que o pré-festival que sobe à vila de Paredes de Coura nos dias anteriores ao certame destaca inúmeros artistas portugueses.
Este primeiro dia de festival começou logo a partir das 14 horas, de forma a acomodar os 20 concertos que foram ocupando alternadamente os dois palcos do recinto. De início, a duração dos concertos foi curta, durando não mais de 30 minutos, mas aumentando progressivamente ao longo do dia. Isto obrigou os artistas a fazer escolhas e a focar-se no essencial que une tanta gente no anfiteatro natural de Paredes de Coura: a música. Este conceito inovador permitiu uma mostra mais completa da variedade musical que se faz em Portugal e trouxe dinamismo à experiência festivaleira, levando o público a mover-se dentro do recinto.
Com tanta oferta, acabámos por perder as apresentações de The Lemon Lovers, Ocenpsiea, Club Macumba, Noiserv, Paraguaii e mais um regresso antecipado, o dos Pluto. A colocação precoce dos Pluto provavelmente motivou grande parte do público a chegar ao recinto cedo, mantendo-o bem recheado até altas horas da noite.
Da nossa parte, a recepção no recinto fez-se ao som de Benjamim, cujo soft rock banhado em sintetizadores nostálgicos e acolhedores entusiasmou uma boa parte do público. Foi dos poucos concertos que ainda vimos ser agraciados pelo sol, o que se adequou perfeitamente à placidez de canções como a celebrada “Terra Firme” ou “Vias de Extinção”, a “melhor canção que já escreveu”, segundo o próprio Benjamim. Apenas “Incógnito” aumentou o ritmo com a sua melodia mais ácida e ritmo de synthpop dançável.
No palco menor, também chamado de Vodafone.fm, começou entretanto o concerto de Rapaz Ego. Tendo o primeiro álbum a solo de um dos fundadores dos Salto sido um dos nossos discos nacionais preferidos do ano passado, este era um concerto pelo qual ansiávamos. Neste caso, a curta duração pareceu jogar a favor do espectáculo, permitindo a exploração da maioria de Vida Dupla, até da mais calma “Ponto Cruz”. As expectativas foram satisfeitas pelo rock desértico e aguerrido de “Crime em Tânger” e da buliçosa “Antero”, tocadas com uma boa dose de carisma. Ficámos felizes por ver que a grande personalidade de Luís Montenegro transcende o formato de álbum e se traduz bem ao vivo.
De seguida, no palco principal, houve espaço para um dos géneros preferidos do festival em anos transactos: o garage rock, pelas mãos dos The Twist Connection. A certa altura, o baterista e vocalista Carlos Mendes recorda o concerto dado pela banda em 2017, no pré-festival da vila, e como o seu coração decidiu parar nesse mesmo dia. Tudo isto para celebrar a vida e o regresso aos concertos, focando-se no facto de que apesar de o seu coração ter parado, ele não o fez. O esforço compensou, tendo em conta a promoção ao palco principal do festival. No que toca à música, o estilo pede uma entrega directa ao assunto, ao qual o público reagiu bem, com moches e palmas que até chegaram a substituir a bateria.
Não chegámos a assistir ao psicadelismo de You Can’t Win, Charlie Brown, mas ainda nos lembramos de os termos visto neste mesmo festival há cinco anos. Fomos directos para o concerto de Samuel Úria, nome já bem reconhecido da esfera musical nacional, mas que nos parece merecer ainda mais. É que o seu concerto foi fabuloso. Começou com “Fica Aquém”, que não ficou nada aquém, particularmente pela afinadíssima e teatral voz do artista. Sensualidade não seria uma palavra que associaríamos à música de Úria à primeira vista, mas a verdade é que a sua entrega acabou por ter um quê da mesma, particularmente na ginga de “Fusão”. Ainda assim, os melhores momentos vieram com a arrepiante “Lenço Enxuto”, cuja letra é uma bofetada de luva branca na masculinidade tóxica, e “É Preciso Que Eu Diminua”, banhada por uma chuva inconveniente, mas que tornou a melodia de caixa de música da canção ainda mais bonita.
O alinhamento fez um desvio da música de guitarra com o (infelizmente) único projecto liderado por uma mulher neste largo alinhamento. A releitura do fado feita por Rita Vian atraiu muita gente ao palco Vodafone.fm e garantimos que não foi apenas para se abrigarem da chuva. Há muito para admirar na sua música: a voz límpida, a dicção perfeita que nos permite discernir todas as suas poéticas letras e a conversão de ritmos do folclore tradicional em batidas electrónicas profundas. O público reconheceu isso, aplaudindo bastante a popular “Purga” e outro dos grandes momentos do concerto, a versão a cappella de uma canção cantada em dueto pelos seus avós. Essa foi apenas uma das coisas que Rita nos trouxe da sua casa, que tem de ser enorme para conter tanto talento e ideias, as coisas que nos fazem avançar e que têm guiado a curta mas proveitosa carreira da artista. Sentimos que ainda falta algo ao espectáculo para ser verdadeiramente transcendente, mas de resto está tudo lá.
A melancolia do fado passa directamente para a quase depressão no rock dos Linda Martini, com letras como “Ninguém é tão feliz quanto diz” ou “Os ratos vão-nos devorar”, escritas para serem gritadas a plenos pulmões em concertos, como, de resto, a chusma de gente fixada em frente ao palco principal fez. A história dos Linda Martini com o Paredes de Coura também já é longa e o público do festival continua fiel à sua emotividade, se bem que os grandes temas do concerto continuam a ser os já clássicos, como “Cem Metros Sereia”, com a sua guitarra ecoante e laivos de dream pop que revelam uma melodia aprumada contraposta à crua letra.
Se os Linda Martini apontaram ao coração, os 10 000 Russos apontaram ao resto do corpo. O rock psicadélico e distorcido da banda é ancorado pelas batidas persistentes de João Pimenta, imparáveis durante os quase 10 minutos de cada canção. A longa duração e a envolvência do ritmo contribuem para um estado de trance, em que a memória motora das pernas acompanha a cadência da bateria, deixando espaço ao cérebro para se perder nos apontamentos electrónicos de Nils Meisel e nas melodias circulares da guitarra de Pedro Pestana. O aparente niilismo das canções foi um bom preâmbulo para um dos eventos principais da noite.
O regresso dos Mão Morta a Paredes de Coura é um acontecimento regular, mas sempre altamente celebrado. Ou não fosse a banda bracarense um dos expoentes máximos do rock português ainda em actividade, apesar das alterações de alinhamento. O mote desta vez foi a apresentação do mais recente No Fim Era o Frio — aliás, ignorando grandes sucessos da banda. No entanto, essas expectativas goradas foram mais que compensadas pela presença magnética do líder Adolfo Luxúria Canibal, cuja voz gutural continua impecável para narrar paixões sórdidas, realidades alternativas e… ora, canibalismo e outros detalhes perversos. Por trás, a música ora é suave, ora industrial, submetendo-se à vontade do líder do projecto. O espectáculo é seu e nós estamos sempre gratos por poder assistir ao mesmo.
Numa vertente muito mais melódica e amigável, fomos ver o concerto de Bruno Pernadas, cuja big band foi demasiado grande para o palco secundário do festival, a rebentar pelas costuras para ver um dos compositores mais celebrados da música contemporânea portuguesa. A celebração foi grande particularmente durante a saltitante “Problem Number 6” e o divertido jazz de “Spaceway 70”, completo com um fabuloso solo de trompete de Diogo Duque. Toda a banda está mais aprumada e com uma maior química desde a última vez que assistimos à apresentação de Private Reasons na Culturgest, dançando e dinamizando ainda mais as composições ricas de Bruno Pernadas. A energia baixou um pouco com “Little Season” e o seu extenso outro de vocoder, acabando por recuperar no longo final de “Ya Ya Breathe”. No entanto, a energia não seria um problema, como se veria nos seguintes concertos.
Dificilmente se pode argumentar que o evento maior da noite não fosse o espectáculo conjunto de Sam the Kid, Orelha Negra e uma orquestra. Regressando ao festival 20 anos depois, Samuel Mira fez uma extensa revisão da sua carreira. Trouxe o pai para momentos comoventes de spoken word, convidou NBC e Mundo Segundo a subir ao palco com ele, passou uma gravação do avô e ainda outra de quando a sua música passou pela Antena 3 pela primeira vez. É justo dizer que a admiração e respeito pelo artista apenas aumentou ao longo dos anos, sendo que agora uma faixa como “Não Percebes” é cantada a plenos pulmões por uma plateia emocionada. Finalmente percebemos o hip hop. Já perto do final, o clássico “Poetas de Karaoke” une o público no refrão que exalta a música cantada em português, uma perfeita representação deste primeiro dia de festival em Paredes de Coura.
Mantendo-nos no hip hop, mas numa vertente mais brincalhona, encontramos o concerto de “jarda” dos Conjunto Corona. Por entre os afamados gritos de “Gondomar! Gondomar! Gondomar!”, distribuição de hidromel pelo público e outros clássicos de concertos nos quais David Bruno está em palco, o trio revisitou o som de hip hop clássico dos seus primeiros álbuns (“Chino no Olho”, “187 no Bloco”, “Perdido na Variante”) e mostrou a vertente mais urbana de G de Gandim, o último álbum. Faixas como “Sempre a Riffar” e “Mãe birei Gandim” abrandam o ritmo para um reggaeton que homenageia a noite do Porto e arredores. Mesmo quem não aprecia o estilo musical ou as piadas hiper-regionais do conjunto deve ter pelo menos desfrutado dos visuais deliciosamente absurdos e hilariantes que serviram de pano de fundo ao concerto, misturando heresia católica, política, clássicos da Área Metropolitana do Porto e uma sensualidade bacoca. Foi difícil manter o concerto dentro dos limites de horário, mas lá conseguiram.
Entretanto, já com o cansaço a tomar conta de nós, fechámos a noite com Moullinex, que apresentou Requiem for Empathy e outros dos seus singles mais recentes com um espectáculo com toda a pompa de um concerto dos The Blaze, que subirão ao mesmo palco na sexta-feira, dia 19. A electrónica, pouco representada neste primeiro dia, ficou a cargo de Luís Clara Gomes, que encheu a encosta do rio do Taboão com crescendos intensos e batidas profundas que incentivaram à dança. O líder do projecto estava notoriamente contente por poder tocar para nós, depois de anos a assistir a concertos do outro lado, como nós. Esse intercâmbio entre público e artista tornou o concerto mais especial.
Já não ficámos para assistir ao concerto do Conjunto Cuca Monga, inusitadamente colocado a fechar o alinhamento de um dia muito especial para o Vodafone Paredes de Coura e para todos aqueles que estiveram presentes. Hoje há mais, com concertos de Beach House, BADBADNOTGOOD, Indigo de Souza, Viagra Boys, mema., Alex G, entre outros.