Vodafone Paredes de Coura (dia 3): fez-se história com The Comet Is Coming, Parquet Courts e L’Impératrice
O terceiro dia do Vodafone Paredes de Coura foi até agora o mais intenso, tanto pela força e qualidade dos concertos, como pela conexão entre artista e público. Parece estranho pensar que ainda só vamos a meio, devido à edição prolongada deste ano, mas a verdade é que a nossa energia está renovada pelo poder da boa música.
Para começar a nossa jornada de concertos do dia, finalmente assistimos ao concerto de Yellow Days no anfiteatro natural de Coura, depois de sucessivos cancelamentos ainda prévios à pandemia — o artista cancelou a aparição de 2019. Graças a isso, o entusiasmo do público era aparente, pois a encosta ficou cheíssima mais cedo do que o costume. Aparecendo de cabelo rapado em vez de com as suas características ondas loiras, George van der Broek destilou a sua mistura tranquila de soul, R&B e rock pachorrento num concerto agradável para o final de tarde, mas sem grande chama. Esta é música feita para aquelas playlists de Spotify tipo Chill Vibes ou Lowkey, com melodias inofensivas (literalmente o primeiro álbum do artista chama-se Harmless Melodies) que servem como pano de fundo para dias soalheiros. Ainda assim, estes Yellow Days soaram mais a Beige Days.
É por isso que abandonamos o seu concerto um pouco mais cedo em prol de algo mais divertido e pujante. Donny Benét, o romântico David Bruno das Austrálias com referências menos locais e uma postura mais descontraída, tomou o palco com a sua pastiche funk muito bem trabalhada. A fórmula repete-se um pouco, mas Donny consegue mantê-la divertida devido à sua dedicação e à atitude confiante de quem sabe não ser sexy, o que que acaba por torná-lo muito mais cativante e sexy.
Para introduzir “Moving Up”, conta-nos que desde que jovem que era um “ugly motherfucker”, enquanto que os seus amigos eram lindos e com peitorais duros como pedras. À medida que se aproximou dos 40, eles foram ficando mais feios e menos cinzelados, enquanto que o sex appeal de Donny foi subindo. A canção fala precisamente sobre isso e foi dedicada a todas as pessoas feias. Mr Experience, o último álbum do artista, é sobre envelhecer e sobre apreciar as coisas boas dessa fase da vida. Uma delas é comer. Antes de nos cantar sobre jantar uma segunda vez em “Second Dinner”, procede a elogiar a comida portuguesa. As suas interacções honestas e bem-humoradas conferem humanismo a um estilo de música que poderia ser distante ou esquivo, devido à sua componente humorística bem carregada. Infelizmente não ficámos mais tempo para abanar a anca, pois algo muito especial começaria em breve no palco principal.
The Comet is Coming é um dos múltiplos projectos de Shabaka Hutchings, o reputado saxofonista da “nova cena jazz” londrina. Este é um projecto profundamente cósmico e ocasionalmente espiritual, que estende os limites do jazz até um local mais bombástico e até dançável. Depois da abordagem mais ponderada de BADBADNOTGOOD no dia anterior, foi óptimo assistir a uma nova perspectiva que demonstra que o jazz está vivo e recomenda-se, abrindo as portas a mais variedade de géneros nos alinhamentos de festivais portugueses.
Os sintetizadores monstruosos de Danalogue provocam uma vibração grave e profunda, abrindo frestas na música que Shabaka popula com explorações de saxofone xamânicas, como se de um ritual exorcista se tratasse. Para completar o embrulho, os ritmos da bateria de Betamax impelem-nos a dançar sem limites e quase sem nexo. Foi assim em “Summon the Fire” ou na versão de “My Queen is Harriet Tubman”, de outro projecto de Shabaka Hutchings, os Sons of Kemet. A libertação foi tanta que as nossas mãos até começaram a ficar dormentes, uma sensação incrível que apenas sentimos quando a música é tão boa que nos desconectamos de tudo o resto. Este foi o concerto dos Comet is Coming, o melhor a que assistimos até agora no festival.
Ainda assim a diferença é pouca para os concertos que se seguiram. O primeiro deles foi o dos Parquet Courts, os nova-iorquinos de post-punk mordaz e ruidoso com a dose certa de experimentação, humor e intervencionismo. O concerto começou com o no wave de “Application/Apparatus”, uma narração da vida tecnológica banhada a sintetizadores modulares que foi apresentando aos poucos os elementos que fazem da música dos Parquet Courts tão especial. Fervilhando com noise, ritmos apurados e guitarras com a quantidade adequada de distorção, a música espoletou os tão desejados moches e crowdsurfs que praticamente não pararam durante o concerto todo. A certa altura, os seguranças pareciam estar a jogar Space Invaders com os festivaleiros que voavam nas mãos uns dos outros.
Não há como escolher pontos altos do concerto. A perfeita “Almost Had to Start a Fight/In and Out of Patience” carregou toda a energia que tem em disco, “Walking at a Downtown Pace” gingou com a confiança de um Brooklynite a pavonear-se por Nova Iorque e a carnavalesca “Wide Awake” permitiu uma festa funky completa com o apito de Austin Brown, o segundo vocalista que parecia o professor de ginástica mais uncool (e por isso mesmo tão cool) de sempre. Até “Plant Life”, a longa exploração que abranda o ritmo de Sympathy for Life (o último álbum da banda), surgiu aqui numa deliciosa versão jam session com elementos de dub e o ritmo saltitante de Max Savage. No final, a celebração do exacto décimo aniversário de Light Up Gold, o fulgurante segundo álbum da banda, fez-se com “Master of My Craft”, “Borrowed Time” e “Stoned and Starving”, e mais haveria se tivesse havido tempo. Que regressem mais vezes, pois o público português demonstrou estar preparado para os gigantes Parquet Courts.
O aquecimento feito durante Parquet Courts serviu para o concerto dos baltimorenses Turnstile, onde a agressão musical se elevou ainda mais com o seu hardcore, explodindo na fúria de moches cuidados — aliás, a banda sempre se preocupou em garantir o bem-estar do público. Foi impressionante perscrutar a energia do público a partir do topo da encosta, onde uma massa de cabeças se movia como um formigueiro em rebuliço. Os Turnstile têm a belíssima característica de ser mais do que apenas uma banda de fritaria punk pela atenção ao som. Isso notou-se na mistura de som impecável, em que se ouvia distintamente a suplicante voz de Brendan, a bateria e guitarras destrutivas, e até outros pequenos detalhes que tornam a música da banda tão transversal a fãs e iniciantes do hardcore.
“Endless”, “Don’t Play” e “Real Thing” foram dos momentos mais aguerridos do concerto, enquanto que o dueto com Blood Orange, “Alien Love Call”, serviu para acalmar os ânimos. Pelo meio ainda houve a fabulosa “Underwater Boi”, uma delícia tanto em álbum como ao vivo. No final, o agradecimento ao público foi sentido, por terem cuidado uns dos outros e de si mesmos. O vocalista Brendan Yates relembra-nos de que temos muita sorte em estarmos vivos e juntos de novo, fazendo-nos pôr tudo aquilo que vivemos até ao dia de ontem em perspectiva. Parece que o amor e a gratitude estão de novo em voga — e ainda bem!
Depois destes dois concertos belicosos no melhor sentido possível, foi sensato ter um concerto como o dos franceses L’Impératrice para recuperar activamente, com um estilo dançável aprumado que trouxe à mente alguns dos melhores elementos do French touch — as melodias doces e efeitos de vozes dos Air ou o funk mais directo dos Daft Punk — adaptados a uma versão única desenhada a regra e esquadro pela banda. Foi uma performance impecável e bem alinhavada, cuja impassividade apenas quebraram durante a gigante ovação de praticamente dois minutos que o público lhe fez. Foi um momento arrepiante que instantaneamente cimentou uma relação de amor entre Paredes de Coura e os L’Impératrice, à semelhança do que aconteceu em 2019 com os Parcels.
Tínhamos receio de que a banda não correspondesse às expectativas da grande popularidade de canções como “Vanille Fraise” ou “Agitations Tropicales”, como se de um daqueles engodos do streaming se tratassem, mas os receios foram completamente infundados. De corações luminosos ao peito que se iluminavam com cores e ritmos de acordo com a música, a banda interpretou o disco pop de “Anomalie Bleue”, da adorável “Submarine” e de “Peur de Filles” — esta última dedicada aos homens que não têm medo de abraçar a sua feminilidade. O baixo de David Gaugué foi o elemento ganhador, acariciando-nos os tímpanos e descendo directamente à anca, enquanto a voz branda de Flore Benguigui nos segredava suavemente. Foi uma delícia de espectáculo que já consta da história de Paredes de Coura.
O apaziguamento continuou com o concerto do conjunto napolitano Nu Genea, que trouxe o Mediterrâneo até ao Norte de Portugal com o seu jazz e funk dançáveis, criando um agradável espaço de convivência que realmente conjura o melhor do estilo de vida mediterrânico. Talvez tivesse sido mais deleitoso termos visto o concerto no final da tarde, trocando a energia dos Comet is Coming para horas mais tardias. Ainda assim, a energia de canções como “Marechià” ou “Vesuvio” foi óptima para manter os espíritos lá no alto. Para quem gostou, recomendamos vivamente o mais recente Bar Mediterraneo.
O after hours foi garantido pelo DJ catalão John Talabot, continuando a curadoria impecável de música electrónica por parte da organização do festival. O festival continua hoje com The Blaze, Arlo Parks, Kelly Lee Owens, Ty Segall, Boy Harsher, Apr Frique & Family, Sylvie Kreusch Baleia Baleia Baleia, Márcia, Ata Kak e Mall Grab.