Vodafone Paredes de Coura: os imberbes BadBadNotGood e a visão dos Beach House
Ao terceiro dia, as pernas dos campistas do Vodafone Paredes de Coura já fraquejam, mas os banhos revigorantes no Rio Coura, que se encontra cada vez menos límpido, curam todos os males. Enquanto se joga às cartas, se conversa, ou simplesmente se descansa um pouco mais, os concertos do Jazz na Relva funcionam como banda sonora. Há que destacar, ainda, a Vodafone Music Session, que levou os Moon Duo à vila, para dar um concerto em frente à Câmara Municipal.
Às 18:30, infelizmente, era pouca a gente que se aglomerava em frente ao Palco Vodafone para ver Bruno Pernadas e o seu ensemble. O conjunto de músicos dedicou-se essencialmente a um dos dois álbuns que Bruno lançou em 2016: Those Who Throw Objects at Crocodiles Will Be Asked to Retrieve Them (que incluímos na nossa lista de melhores álbuns de 2016), começando pela incrível “Spaceway 70”. A multitude de instrumentos encaixou-se de uma forma aprumadíssima, desde as vozes de Francisca Cortesão (dos Minta & The Brook Trout) e Afonso Cabral (dos You Can’t Win, Charlie Brown, que actuaram no festival no dia anterior), à secção de sopro, que completa as canções longas com aquele toque solarengo que as torna tão adequadas a fins de tarde como o que se vivia em Paredes de Coura.
Bruno é o maestro e todos se guiam por ele, quando dá o sinal para começar. Os seus dedos de manteiga deslizam pelo braço da guitarra de uma forma alucinante, provando a sua capacidade como instrumentista, que se junta à sua valência de compositor exímio. O pouco público que assistia ao espectáculo fê-lo com a atenção devida, celebrando cada canção com aplausos calorosos, e abanando o corpo ao som do seu groove. O concerto termina com “Galaxy”, e com a certeza de que Bruno Pernadas é um dos artistas portugueses contemporâneos de maior qualidade.
Depois de um concerto vivaço, a placidez do canadiano Andy Shauf, que tomava o palco Vodafone.fm com o seu folk barroco, ficou um pouco fora de tom. Fazendo-se acompanhar também de uma boa quantidade de músicos, à semelhança de Bruno Pernadas, as canções são menos cheias e soam agradáveis ao ouvido com os seus clarinetes apaziguadores, mas parece que se enquadram melhor em tardes chuvosas que no bulício do festival.
O contrário de placidez viveu-se uns minutos depois no palco Vodafone, quando os escoceses Young Fathers tomaram de assalto o mesmo, com a sua mistura inusitada de hip-hop, pop e soul. Os três membros principais contribuem com as suas vozes para as canções que parecem vir de quem já passou pela sua quota-parte de atribulações ao longo da vida. A sua performance é hipnótica; os membros fixam o seu olhar no horizonte, transformando-se em estátuas vivas, para de repente cruzarem olhares com a audiência, numa intensidade brutal. Essa intensidade é coadjuvada pelas batidas caóticas, carregadas de baixo que põe à prova o sistema de som do festival. As suas canções mais reconhecidas, como “Get Up”, “Rain or Shine” ou “Shame”, são bastante celebradas e dançadas pelo público, ao passo que as canções que desaceleram o concerto, e devem mais ao soul, induzem uma sensação de apreensão pungente. Se as canções não tocam a quem as ouve, pelo menos a actuação intriga sempre.
Surpreendentemente, o recinto continuava ainda relativamente vazio, quando comparado com os dias anteriores. Esperávamos um maior entusiasmo para assistir à estreia dos BadBadNotGood em Portugal, se bem que a banda se encarregou de entusiasmar a audiência, que foi crescendo até ao fundo do recinto. Aliás, o concerto dos canadianos foi um dos mais bem recebidos até agora. A banda dedicou-se maioritariamente aos seus álbuns III e IV, tocando as diversas canções como se se encontrassem num ensaio/sessão de improviso, adicionando elementos melódicos, e acelerando ou desacelerando ritmos, sem que as canções perdessem a identidade ou o concerto se aventurasse por terrenos de free jazz que talvez não interessassem tanto ao público.
A banda, tão jovem como muitos daqueles que assistiam ao seu concerto, tem aquele entusiasmo imberbe que, quando mal canalizado, pode perder o foco. Aqui, simplesmente engrenou, e nunca mais parou, à medida que a banda passava por canções, como “Lavender” ou “Kaleidoscope”. Nem sequer recorreram ao seu hit mais reconhecível, “Time Moves Slow” – e nem teriam de o fazer. Puxando pelo público, o baterista Alex Sowinski fez com que nos baixássemos todos até ao chão, com que abanássemos os nossos braços ao som das canções e com que gritássemos um pouco de tudo. A banda parece ter-se rendido a Portugal, mas o contrário talvez seja ainda mais verdadeiro.
Numa mudança quase antipodal, passámos de jazz embebido em hip-hop, para o garage rock dos Japandroids. O duo, também canadiano, apresenta-se em palco com uma guitarra, uma bateria e uma pilha de amplificadores, que servem para fazer a maior quantidade de barulho possível. Na verdade, tal não se verificou como esperado. As canções soaram relativamente despidas de distorção, e descobriu-se a linearidade das mesmas. Talvez seja apenas que as canções mais recentes não tenham a urgência que as anteriores instigavam. Apesar de tudo, os ritmos agitados incitaram o público a fazer moches e crowdsurfing intermináveis, que não deram descanso aos seguranças. A nuvem de pó tornava o ar irrespirável perto do palco, mas o povo não parava. A entrega concisa da banda até deu tempo para uma canção extra, “No Known Drink or Drug”, do mais recente Near to the Wild Heart of Life. No fim, chegou o momento que todos esperavam, o hino “The House That Heaven Built”, e foi tudo aquilo que deveria ser. Até quase compensa o resto.
Após um atraso incompreensível, superior a 30 minutos, os americanos Beach House subiram ao palco. A banda dá um concerto muito sui generis, sendo uma autêntica experiência religiosa para os fãs da banda, mas talvez não inspirando tanta reverência para quem não os conheça tão bem. Mantêm-se sempre fiéis à sua visão, tocando na quase escuridão e afogando as melodias na reverberação que caracteriza o seu som quente. Apesar disso, os seus crescendos também levam a momentos bombásticos, em que as luzes quase cegam o público habituado à escuridão e o som enche o recinto. “Elegy to the Void” deu azo a um desses momentos, quando Victoria Legrand pega na guitarra eléctrica e toca repetidamente o riff do clímax, numa viagem interespacial em forma musical. “Myth” termina o concerto com a sua melodia de levar às lágrimas, e assim de repente, terminou tudo. O atraso certamente reduziu o tempo de actuação e o final abrupto deixou um sabor amargo.
Para o after hours, os Roosevelt, envergando fatos brancos, entretinham o público que ainda queria queimar mais algumas calorias a dançar, o principal propósito da música dos britânicos. As batidas lembram o som que se ouve ao ligar um cabo a uma entrada de som, numa espécie de chicoteada sonora que impele o corpo a mexer. As canções limpas, com influências dos anos 80, soam bastante semelhantes umas às outras, mas o que importa mesmo aqui é abanar a anca. O mesmo se aplica ao DJ Red Axes, que faz vibrar o povo que quer queimar os últimos cartuchos, assim como o campismo, que já se povoa de muitas pessoas a descansar para o último dia, em que veremos Foals, Ty Segall, Alex Cameron ou Benjamin Clementine.
Fotografias da autoria de Hugo Lima.