21 de Outubro de 2018, Louise

por Comunidade Cultura e Arte,    21 Setembro, 2018
21 de Outubro de 2018, Louise
Fotografia de Ferdinando Scianna

Georges escrevia em alemão. Não era seu hábito, mas, tratando-se de um diário, talvez o alemão fosse a sua língua secreta: Louise não falava com fluência, Flamignon não chegou a aprender, apesar de reconhecer que teria valorizado muito falar a língua da grande filosofia. Louise reconhecia a caligrafia de Georges, mas a muito custo conseguiu perceber algumas passagens do que estava escrito. Eram escritos íntimos, que talvez Georges não quisesse que chegassem às mãos da mulher, e também isso a fazia hesitar. Contentava-se com o olhar para as letras sem ler, como se ele estivesse ali e ela o olhasse sem querer outra coisa que contemplá-lo. Não procurava entender nada, reparando apenas no desenho dos cabelos, no percurso das rugas, nos descuidos: a barba por fazer em determinado ponto, sujidade num dos dentes, a camisa por passar. Mas, mesmo sem esperar mais que contemplar, Louise não pôde deixar de reconhecer o seu nome. E conseguiu ler

Louise tem ocasionais acessos de vulgaridade. Esses acessos surpreendem-me, como faróis ofuscam o conductor nocturno. No meio de um susto, pergunto-me todos os dias: quem é, afinal, a mulher com quem casei? E nessas ocasiões, meu Deus, tapo a cara com as duas mãos e penso em Ti. Para que me salves de algum dia ser infeliz.

Hoje é domingo. Louise não dormiu um único minuto. Já o sol estava a nascer quando descobriu esta passagem. Flamignon estava sentado na poltrona, a dormir. Tinham ficado na sala, não conseguiam, depois dos tantos entusiasmos descritos no capítulo anterior, deitar-se na cama. Ao ler a passagem em que Georges fala de si, Louise sofreu sem ruído – acima de tudo não queria que Flamignon tivesse sequer a possibilidade de adivinhar o que ia no seu interior. Levantou-se, e pôs-se de pé frente à janela. Movimento nenhum, na sua rua; pouco movimento no cruzamento onde ainda no dia anterior tinham passado com Agostinho da Silva. A mulher contrai os lábios, o queixo. Não oferece resistência à vontade de chorar. E sente prazer nisso. Pensa em Georges. Que se tivesse sabido deste sentimento mais cedo, talvez se tivesse evitado tão prolongado luto. Também ela sofrera, também ela estivera tantas vezes à beira da infelicidade. Mas era nele que encontrava salvação. E esta revelação tem o sabor de uma traição. Como se por um equívoco lhe tivesse sido dada a hipótese de olhar para um homem que acabou por amar como nunca poderia imaginar que se ama. Não consegue imaginar-se vulgar. Gostaria de poder entrever os acessos de que Georges fala, para perceber de que forma era ela, ainda que ocasionalmente, vulgar. O comentário, que leu por acaso, ganha corpo agora na cabeça de Louise. Um pouco paternalista, pensa para si. Um pouco desajustado. Um pouco vulgar, também ele, procurando como mau amante os defeitos do amado. E o gesto de Georges: colocar nas mãos de Deus a sua salvação enquanto usa as suas para tapar a vergonha… A vulgaridade toca a todos, querido Georges. Com que homem casei eu, afinal?, atreveu-se Louise a perguntar. Quem era realmente Georges?

Eram 9h quando num salto Flamignon despertou. Estava responsável por abrir o quiosque hoje. Adormecera. A mãe estava à janela.

– Que horas são? Nove? Meu Deus… Já estás acordada?

Ela olha para ele, queria apenas acenar que sim e encolher os ombros, mas o rapaz está distraído com o seu próprio atraso.

– Estou atrasadíssimo. Almoço em casa.

E, dizendo isto, correu, vestido como tinha dormido, porta fora. Louise ficou só. Ainda bem, pensou para os seus botões. Muito há que digerir. Foi até à cozinha, meteu água a ferver, mergulhou um pequeno saco de chá na caneca cheia. Sentou-se no sofá da sala, em frente ao diário de Georges, a beber com vagar. Meu Deus, repetia para si. Não sabia sequer que a Deus se dirigia Georges. Não conseguia deixar de o ver, deitado nos seus últimos dias, as sucessivas lágrimas escapando dos olhos, a voz reduzida a sons impossíveis de compreender. E ela, palma da mão sobre a testa dele, pedindo-lhe calma, silêncio, que tranquilamente se deixasse ir. Ah, Georges, bem sabes que todos te amamos. Mas afinal, podiam as lágrimas ser de alívio; afinal, podia o amor ter apenas um sentido; afinal, podia Georges querer esclarecer, tentando canalizar para isso as suas derradeiras forças, que não amava Louise porque não a conhecia – estava iludido, casado com uma imaginação sua. Meu Deus, pensaria para si mesmo, porque me não deixas falar? Dá-me só um pouco de força, para que consiga, no final, trazer um pouco de justiça, de sentido, à vida que deixo. Meu Deus…

E é quando Louise pensa em ir à missa. São onze da manhã, talvez consiga ir àquele lugar onde, quando a mãe a visitava, iam. Vestiu qualquer coisa, esperava que a missa não estivesse a terminar, saiu de casa, desceu à Estrela, depois ao Rato, subiu em direcção ao jardim das Amoreiras, e a meio da subida, procurou a porta à esquerda. Estava aberta, lá dentro algumas pessoas já sentadas. Louise procurou um lugar, sem perguntar a ninguém sobre a missa. Deixou-se ficar numa cadeira encostada à parede, enquanto a capela se enchia até não haver onde sentar. Às onze e meia, o padre entrou. Ao acompanhar a sua entrada, Louise pode jurar que vê no lado oposto da capela o rosto sisudo de Georges. Quando todos se sentam, deixa-se estar de pé, e confirma que é Georges de facto. Aparecimento que, de resto, não a surpreendeu – uma vez que têm sucedido nos últimos dias coisas fantásticas. Ele olhou para ela, com o olhar dizendo vim ao teu encontro. Ela senta-se, para ouvir a missa – ritual de que se aparta sem pudores, simplesmente porque não se sente capaz de participar. Sempre parecera, a Louise, que a gente na igreja se torna cega, olhos postos no chão, ou no tecto, olhos postos numa abstração, longe da realidade. Mas hoje, o sentimento é outro: Louise olha para a porta da capela, analisa o comportamento dos que chegam e dos que vêem chegar; não raras vezes se cruza o seu olhar com o de outra pessoa, que lhe responde com um sorriso. Sente que, num transporte impossível, foi parar a uma pequena aldeia. E sente-se como se abraçada por um conjunto de pessoas que não conhece. Quando dá conta, a voz de Georges, o seu sotaque e tudo, anuncia: Leitura do Livro de Isaías.

Aprouve ao Senhor esmagar o seu servo pelo sofrimento. Mas, se oferecer a sua vida como sacrifício de expiação, terá uma descendência duradoira, viverá longos dias, e a obra do Senhor prosperará em suas mãos. Terminados os sofrimentos, verá a luz e ficará saciado na sua sabedoria.

Louise baixa a cabeça até que termine a cerimónia, não olhará para ninguém. Nem mesmo quando todos se cumprimentam, e procuram a sua cumplicidade, o seu olhar se levanta. Sai da capela no meio da multidão, cumprimenta o padre com um sorriso de olhos, desce os poucos degraus e dá com Georges no passeio à sua espera. Olha-o apenas por instantes. Sem apressar o passo, mas como se nada fosse, começou a caminhar para casa. Georges caminhou ao seu lado, sem que dissessem palavra. De vez em quando ela olhava para ele, e ele olhava para ela. Parecia cansado. Caminharam sem particular atenção ao outro, se Louise caminhasse sozinha levaria o mesmo passo. Quando chegaram ao início da Rua do Patrocínio, Georges deixou-se ficar um pouco para trás, Louise chegou à porta de casa, destrancou-a, parou na soleira, olhou para ele. Um momento ficaram assim, olhando um para o outro. Depois, Louise entrou, subiu as escadas. Quando chegou ao terceiro andar, a sua casa, não tirou o casaco. Foi até à janela. Lá estava ele, no passeio, quieto, olhando para cima. Ela abriu a janela e deixou-se ficar. Pareces cansado, pensava para si.

Flamignon cruza a esquina, Louise consegue vê-lo chegar. Olha para a janela e sorri.

– Estás à minha espera?

Não consegue ver o pai?

– Cheguei agora!

– Onde foste?

– Fui à missa.

Flamignon pára exactamente ao lado de Georges, nenhum parece dar pela presença do outro.

– E fizeste almoço?

– Não.

– Então vou buscar num instante.

Flamignon vai. Georges fica no mesmo lugar. Sem levantar muito a voz, Louise diz

– O professor Agostinho passou a tua mensagem. Eu lá a descobri.

Georges acena com a cabeça, encostando por momentos o queixo ao peito. Depois, foi-se embora. Louise ficou à janela. Num instante ele desapareceu da sua vista. Ela despiu o casaco, meteu a mesa. Abriu as persianas das janelas da sala – estavam há tanto tempo fechadas, que precisou de usar o corpo para as puxar. Abriu as portadas, e deixou-se ficar a olhar para a rua enquanto esperava por Flamignon.

Texto de Guilherme Gomes

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