40 anos de ‘Annie Hall’
Annie Hall é um filme norte-americano realizado por Woody Allen em 1977, baseado num guião escrito por Allen e Marshall Brickman. Este filme, que veio revolucionar o paradigma da comédia romântica, apresenta-nos um comediante nova-iorquino, Alvy Singer, que recorre à terapia de modo a entender algumas paranóias e motivos que conduziram ao fracasso das suas relações amorosas.
O filme
No início desta longa-metragem, Alvy apresenta-se ao espetador através dum denso monólogo e manifesta imediatamente a sua conceção sobre a vida: solitária, infeliz, repleta de desgosto e sofrimento e, sobretudo, fugaz. Ainda nesta cena, Alvy recorre a Groucho Marx, afirmando que I would never want to belong to any club that would have someone like me for a member.
Alvy e Annie conhecem-se pela primeira vez durante uma partida de ténis. É, após o jogo, que irrompe uma das cenas mais famosas do filme: na casa de Hall, um diálogo aparentemente trivial entre ambos revela ser, através de uma espécie de legenda mental, uma sedução. Apesar de Alvy afirmar que esta relação se distingue das suas anteriores, assim que Annie se muda para a casa do comediante, as adversidades surgem rapidamente. Eventualmente o casal separa-se e Alvy questiona vários transeuntes nova-iorquinos de forma a descodificar as motivações que levaram ao fim da sua relação amorosa. O comediante escuta respostas como Never something you do. That’s how people are. Love fades, realçando a naturalidade no distanciamento entre os amantes e o final inevitável das ligações amorosas.
Apesar de Annie e Alvy se reconciliarem, Hall recorre também a sessões de terapia, começando a percecionar o caos e a instabilidade que afetam o seu envolvimento com o comediante. Após uma viagem a Los Angeles, Annie termina novamente o namoro e decide mudar-se para lá, tentando uma carreira na música. Apesar de uma proposta de casamento por parte de Alvy, Hall decide não regressar.
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A influência no contexto
Annie Hall é indubitavelmente um espelho da década de 70, apresentando o cenário cultural nova-iorquino da época, os estereótipos e a importância atribuída à psicanálise.
Este filme, que trouxe um outro nível de seriedade à comédia romântica, aborda diversos temas como a absurdidade do amor; a cidade de Nova Iorque enquanto elemento identitário e antagónico de Los Angeles; a psicanálise; a identidade judaica; o medo; e os estereótipos de género que se manifestam na relação amorosa.
No início desta longa-metragem, Alvy reflete sobre as causas que terão posto um final à sua relação com Annie e, no final da mesma, conclui que o amor é absurdo e irracional, mas que essa mesma absurdidade é indispensável para a vida. No entretanto, o protagonista tenta compreender qual foi o episódio preciso que o terá tornado incapaz de conseguir estabelecer uma relação duradoura e equilibrada. Alvy chega inclusivamente a questionar cidadãos nova-iorquinos para perceber qual é o segredo de uma relação feliz, sem, no entanto, obter respostas satisfatórias. O facto de ter deixado de sentir atração sexual pela primeira esposa e de ter tido um casamento psicótico com a segunda inquietam ainda mais o protagonista. A hostilidade e a neurose em que Alvy está constantemente submerso abrangem todas as ruas relações e comportamentos diários, sendo apropriado mencionar que o título pensado para este filme seria Anhedonia, caracterizada por ser uma condição psicológica que não permite quaisquer sensações de felicidade ou de prazer.
O filme termina com uma reflexão que explica claramente a necessidade que todo o indivíduo tem de amar:
I thought of that old joke. This guy goes to a psychiatrist and says, ‘Doc, my brother’s crazy. He thinks he’s a chicken.’ And the doctor says, ‘Well, why don’t you turn him in?’ And the guy says, ‘I would, but I need the eggs.’ Well, I guess that’s pretty much now how I feel about relationships. They’re totally irrational and crazy and absurd and . . . but I guess we keep going through it because most of us need the eggs.
Em Annie Hall destacam-se também os estereótipos que marcam a diferença de género numa relação. Este enredo centra-se no relacionamento de Alvy Singer, o ex-namorado de Annie que, apesar de demonstrar uma afeição inigualável por Hall, irá filtrar todos os aspetos da ligação amorosa a partir do seu olhar. É de salientar também que não existe uma única cena no filme em que Annie participe sozinha, o que significa que esta só existe na narrativa enquanto amante de Alvy. Assim, ao longo do filme, a relação entre Hall e Singer é marcada por uma discrepância, pois Alvy, um intelectual, encara Annie como uma mulher oriunda de Wisconsin, que utiliza vocábulos obsoletos, afastando-se, desta forma, do paradigma cultural nova-iorquino. Hall, até recorrer à terapia e fortalecer-se, acatava os comentários do protagonista, tendo chegado inclusive a inscrever-se na disciplina de Temas Existenciais na Literatura Russa. Annie, de acordo com a perspetiva de Alvy, distinguia-se por ser mais carente e por possuir uma maior necessidade de ser amada, opondo-se ao protagonista, que receava o compromisso, estabelecendo-se como o mais pragmático entre ambos.
Nova Iorque
Outra temática bastante presente na longa-metragem é o paralelismo existente entre a cidade de Nova Iorque e a personagem Alvy Singer. Assim como a Big Apple, Alvy caracteriza-se por ser sorumbático, claustrofóbico, ainda que um intelectual. O protagonista assume uma lealdade incomparável para com a sua cidade, menosprezando todos os outros locais, especialmente Los Angeles, que tipifica como um antro de superficialidade. Durante uma viagem à cidade dos anjos, Annie comenta a limpeza da cidade ao que Alvy responde imediatamente That’s because they don’t throw their garbage away, they turn it into television shows, enfatizando a ignorância dos habitantes da cidade. Apesar da opinião de Singer, Annie aprecia bastante o ambiente de Los Angeles, acabando por se mudar para lá. Assim, estes dois locais representam dois tipos de personalidade e estilos de vida distintos.
Depois de Annie recusar o pedido de casamento de Alvy, esta afirma que You’re incapble of enjoying life (…) I mean you’re like New York City. You’re just this person. You’re like this island unto yourself, realçando que é precisamente o pessimismo e a hostilidade que a afastaram do protagonista. Alvy, devido à sua agressividade, é incapaz de se relacionar, de conduzir ou de usar drogas, teme terrivelmente a morte e força constantemente Annie a um cenário cultural a que, muitas vezes, ele mesmo tenta escapar. Por estas razões, Alvy serve-se da terapia como um guia. Em Annie Hall, a psicanálise acarreta um efeito cómico, mas é indubitavelmente uma forma de mostrar o quão ubíquas eram as ideias freudianas no final da década de 70. Contudo, as referências à psicanálise vão muito além da terapia em si: Alvy menciona, no início do filme, o livro O Humor e a sua Relação com o Inconsciente da autoria de Freud; e, mais tarde, os conceitos freudianos ressaltam quando Annie relata um sonho no qual Frank Sinatra a sufocava com uma almofada, tendo a terapeuta notado que o músico simboliza apenas Alvy.
O judaísmo
Para além da representação estereotipada das cidades de Nova Iorque e Los Angeles, em Annie Hall está presente um outro estereótipo: a identidade judaica. Quer na cinematografia de Allen, quer neste filme de modo particular, as generalizações são tratadas de forma irónica, sempre com o intuito de categorizar as personagens, desvendando também a crueldade nessa mesma categorização. Alvy Singer é assinalado como um judeu neurótico, sendo que grande parte das divergências existentes entre si e Annie remetem para esta problemática identitária. O protagonista imagina teorias de conspiração antissemitas, revelando ao seu amigo Rob certos comentários rotineiros que este interpreta como sendo preconceitos como, por exemplo: You know, I was having lunch with some guys from NBC, so I said ‘Did you eat yet or what?’ And Tom Christie said, ‘No, Jew?’ Not ‘Did You?’…Jew eat? Jew? You get it? Mais tarde, num almoço com a família de Annie, Alvy chega mesmo a transformar-se num judeu hassídico, mostrando longas barbas e um chapéu preto. Isto devido à conceção estereotipada que a família de Annie tem em relação à massa judaica, pois Hall, noutro momento, já havia mencionado que a sua avó detestava judeus devido à forma de como estes assumem o poder económico como a sua preocupação central. Deve salientar-se a hipocrisia num comentário desta natureza, visto que os Estados Unidos da América são um país capitalista, onde a ambição primordial é lucrar.
As referências
Esta longa-metragem está também repleta de referências culturais, existindo alusões ao mundo literário, cinematográfico e artístico. Ao longo do filme, o espetador escuta nomes como Balzac, Sylvia Plath, James Joyce, Truman Capote, Thomas Mann, Billie Holiday e Federico Fellini. Contudo, os elementos culturais que mais se destacam são as referências a The Denial of Death de Ernest Becker, Ariel de Sylvia Plath e Der Tod in Venedig da autoria de Thomas Mann.
The Denial of Death é um dos livro que Alvy oferece a Annie, enfatizando a obsessão que este tem com a temática da morte. Nesta obra, Becker defende que a única forma de conseguirmos sobreviver e agir é negando a mortalidade. Porém, é esta mesma recusa que afasta o verdadeiro conhecimento. O autor criou ainda uma divisão entre o ser físico e o ser simbólico, o que significa que somos capazes de transcender a morte através do heroísmo, um conceito que compreende o ser simbólico.
Mas Alvy não indica a Annie apenas livros teóricos sobre a morte, oferecendo-lhe também obras literárias como Der Tod in Venedig, de Thomas Mann. Neste livro, Veneza é o local onde se exalta o belo, sendo, no entanto, também um pano de fundo para o perverso e para o pútrido encoberto. É o local onde a morte chega de forma inevitável, mas anunciada. Annie Hall, no final da longa-metragem, afirma inclusivamente What’s so great about New York? It’s a dying city. You read Death in Venice, realçando que Nova Iorque e Veneza aparentam ser um Éden, mas revelam ser apenas cidades decadentes.
Estas obras representam não só a fixação de Alvy em relação ao domínio da morte, mas espelham também o início e o final do caso amoroso entre Hall e Singer. No princípio da relação, Alvy oferece as obras mencionadas a Annie. No final da mesma, aquando da separação dos livros e antes de Hall partir para Los Angeles, esta entrega todas as obras que referem a morte ao protagonista. Este ato representa a entrega da decadência a Alvy Singer.
Outro livro mencionado é Ariel da escritora Sylvia Plath, apresentando-se como um dos maiores marcos de discrepância no conhecimento cultural de Alvy e de Annie. Alvy, quando pega no livro de Plath, assinala an interesting poetess whose tragic suicide was misinterpreted as romantic by the college girl mentality, ao que Annie Hall responde Some of her poems seem neat. Neat é um vocábulo em desuso que Alvy costumava englobar nos termos que atribuía a Chippewa Falls, evidenciando a falta de erudição de Annie Hall.
Annie Hall, que apesar de celebrar o seu 40.º aniversário em 2017, singulariza-se como uma comédia romântica que alude a imensos elementos culturais e analisa temas importantíssimos da sociedade nova-iorquina da década de 70, apresentando uma atualidade indiscutível. Não há nele comentários ou olhares ao acaso. Tudo compreende uma significação. O crítico de cinema Roger Ebert salientou um fator excecional sobre este filme: few viewers probably notice how much of it consists of people talking, simply talking. They walk and talk, sit and talk, go to shrinks, go to lunch, make love and talk, talk to the camera, or launch into inspired monologues like Annie’s free-association as she describes her family to Alvy. Este é indubitavelmente um filme em que os diálogos significam o que significam e ainda mais.