Uma escolha do Homo… segundo uma escolha pelo sapiens
Recentemente os noticiários do mundo abriram com a notícia de que um cientista chinês, He Jiankui, aplicara em duas gémeas humanas a tecnologia CRISPR-Cas9.
Distinguida em novembro de 2014 pelo Prémio Breakthrough 2015, aqui bastará dizer que constitui uma forma relativamente barata e fácil de editar o genoma. À semelhança das antigas costureiras que cortavam na roupa as zonas puídas dos joelhos e cotovelos, e aí cosiam pedaços de tecido mais apresentável. Talvez antes como joelheiras de cabedal que resistissem a futuros rasgões, He Jiankui diz agora que coseu um traço genético que propiciará à menina por ele editada uma resistência em eventuais contactos com o vírus HIV.
A 2.ª escolha
Ao procurarmos porém informação mais desenvolvida e rigorosa sobre essa tecnologia, convirá que averiguemos também o estado-da-arte dos desenvolvimentos da experiência, igualmente há quatro anos, no Instituto Scripps (Califórnia), que logrou fazer reproduzir células com duas “letras” genéticas artificiais além das quatro naturais. Além da resistência ao HIV, e – ainda mediante a CRISPR-Cas9 – por que não do desenho de fibras musculares e dos ligamentos (mais a vontade de trabalhar!) que permitam marcar livres à Cristiano Ronaldo, etc., será esta outra biotecnologia o caminho para um córtex de Mr. Spock?…
Nesse caminho, convirá pois que nos perguntemos: o que vamos assim fazer do homem? E dos cães de companhia, das batatas, milho…
São possíveis três famílias de respostas: a) uma “conceção engenheiril” da técnica, em que nos assumimos como Homo faber, devendo-se realizar tudo o que for tecnicamente possível. b) A subordinação da técnica a uma “eco-ética”, que ou reconhece um valor último à Natureza (panteísmos…), ou a constitui como um legado ao cuidado do homem – assumindo-nos assim como seus curadores (creio que como defendeu Joseph Ratzinger…) – e não como um mero depósito de recursos para a produção humana. c) Quaisquer posições intermédias, nos reconhecimentos de que, desde o Neolítico, a Natureza com que lidamos já resulta da intervenção humana – uma eco-ética só poderá gerar uma utopia, não um plano de objetivos a realizar – e de que os “recursos” de que o Homo faber se serve têm condições próprias, que se não forem respeitadas inquinarão, ou mesmo derrubarão a obra humana.
Há aí, pois, uma escolha a fazer. Mas, como se não bastassem os desafios de novas tecnologias como aquelas, estes nossos tempos são complexos também porque o modo de fazer tais escolhas é menos unívoco do que tendeu a ser na segunda metade do século passado.
O Homo sapiens e a 1.ª escolha
Com efeito, herdamos daí normas como o princípio da responsabilidade (Hans Jonas) – não ponhas em perigo a continuidade de uma vida autenticamente humana sobre a Terra. Ou o princípio da autonomia (permissibilidade, H.T. Engelhardt) – não faças ao outro o que ele não faria a si mesmo, e faz-lhe só o que ele permitir – mais o da beneficência – faz ao outro apenas o bem.
Mas essas normas são meramente formais, não determinam o que seja afinal uma “vida autenticamente humana”. Nem em concreto o que “não faças ao outro”, ou que “bem” se deve fazer (Engelhardt remete a determinação deste último para cada cultura). Ao contrário de éticas realistas como, por exemplo, nos 10 Mandamentos. Na esteira de Immanuel Kant (séc. XVIII), a ética formal apenas determina o processo por conformidade ao qual qualquer ação será considerada “boa”.
Segundo essa conceção somos equivalentes, por assim dizer, aos habitantes da bela Cidade das Esmeraldas em O Feiticeiro de Oz: vemo-la verde não porque ela o seja, mas porque usamos óculos desta cor.
Em alternativa a essa dominante herança Moderna, neste início do séc. XXI (e lembrando heranças medievais…) têm-se apresentado diversas obras como o Manifesto do Novo Realismo (2012), do italiano Maurizio Ferraris, o Adeus, Kant (2009), do francês Quentin Meillassoux… Segundo as quais podemos, e devemos, ao menos nos acercar da cor que é da cidade para além de quaisquer óculos. E assim nos acercarmos, previsivelmente, do que seja “uma vida autenticamente humana”, do que seja o “bem” para os seres humanos.
Em suma, encontramo-nos hoje, num primeiro passo lógico, de novo (!) perante a escolha entre dois modos de escolher em geral. Para, num passo consequente, aplicarmos um desses modos na escolha do modo de lidar com novas tecnologias como a CRISPR-Cas9.
Não podendo entretanto fugir a alguma compreensão do que sejamos como “homens”. Se ajudar para esta última questão, nada será mais próprio do Homo sapiens do que enfrentar, e responder, àquela questão primordial.