Quando o Rei faz anos. E hoje o Bill Hicks fez

por Rui Cruz,    16 Dezembro, 2018
Quando o Rei faz anos. E hoje o Bill Hicks fez

Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Hoje é dia 16 de Dezembro, um dia mais relevante do que parece. É o dia em que o Vesúvio entrou em erupção e matou mais de 3000 pessoas, o dia em que começou a revolução americana com o Boston Tea Party, o dia em que o Cazaquistão se tornou independente, tudo acontecimentos importantes e que mudaram a história do mundo. Mas, mais do que estes acontecimentos, dia 16 de Dezembro é o dia que mudou o meu mundo porque é o dia em que nasceu aquele que é o meu herói, o meu modelo, a minha meta. Faz hoje 57 anos que nasceu o Bill Hicks. Já muito se escreveu sobre o Bill (sim, eu trato-o por Bill, afinal somos unha com carne há 8 anos. Ele a unha, eu a carne onde ele se espetou e deixou para sempre a cicatriz), mas eu nunca me atrevi a fazê-lo porque sempre tive a sensação de que tudo o que dissesse pecaria por defeito, no entanto, hoje é o dia em que, tendo a certeza que não lhe vou fazer justiça nem à importância que tem na minha vida, decidi dedicar-lhe este texto atabalhoado como prenda de aniversário.

É difícil para mim escrever elogios. Há muito tempo que me dedico à escrita de comédia e na comédia ganha-se o hábito de olhar para o defeito e não para a virtude. Ninguém se ri de elogios e todas as homenagens humorísticas vêm camufladas com um chorrilho de insultos, como nos roasts, por isso perdoem-me a falta de jeito. Todavia, senti que tinha de o fazer. A minha história com o Bill começou mais ou menos quando decidi fazer da comédia o meu sustento. Lembro-me perfeitamente do dia em que o decidi e de ter chegado a casa e ter metido a sacar 30 gigas de stand up comedy, de comediantes que conhecia, de comediantes que tinha ouvido falar, mas nunca tinha visto e de comediantes que me eram totalmente desconhecidos. O Bill era um destes últimos. Lembro-me que demorei um bocado a pegar nele, comecei pelo Gervais, fui até ao Chappelle, ao Carlin, ao Amazing Johnathan, entre outros. Depois abri o especial do Bill, o “Revelations”, e vi um gajo de mullet. Lembro-me de pensar “man… não. Que redneck é este?! Vou dar 5 minutos por descargo de consciência e passo para o próximo”. Quão errado eu estava? Os 5 minutos passaram a 10, os 10 a 20 e quando dei por mim estava já a ver o “Relentless”, logo a seguir o “Sane Man” e depois tudo o que havia no YouTube com e sobre ele. Foi um murro no estômago, um abre olhos, uma sessão espírita. O que vi não foi um comediante, foi um pensador, um filósofo, uma rock star messiânica que por acaso escolheu a comédia como forma de expressão (apesar de também o ter feito através da música) e profissão. E a minha vida mudou. Foi o Bill, mais do que todos os outros, que me mostrou que a comédia é para fazer rir, mas também pode ser usada como ponto de partida para pensamentos mais profundos, para suscitar debates ou até para fazer chegar uma mensagem complexa de maneira simples. Foi também o Bill que me mostrou que aquilo que quero dizer é mais importante do que aquilo que os outros querem ouvir. Foi o Bill que me ensinou que a arte não faz concessões e que quando as faz não deixa de ser arte, mas mata o artista. Aliás, a maior lição que o Bill me deu foi que eu posso ser eu enquanto artista. Porque o Bill foi sempre ele, foi o Bill do material pueril quando era um adolescente (sim, ele começou a actuar com 13 anos. 13 anos!), foi o Bill amargurado e alcoólico que por vezes tinha de ser retirado do palco quando estava a descobrir-se e a puxar os seus limites e foi o Bill profeta quando atingiu a maturidade intelectual e pessoal e dizia as coisas que tinha de dizer para não se transformar num daqueles malucos que vemos nas ruas a gritar “O Papa roubou-me os flocos de aveia”. Sim, o Bill foi sempre ele, mesmo quando actuava em comedy clubs pejados de republicanos e atacava o falecido Bush ou quando decidiu retratar fielmente a plateia inerte da sua Flying Saucer Tour vol. 1 enquanto outros humoristas não rejeitariam a hipótese de meter gargalhadas enlatadas. O Bill foi sempre o Bill. Hoje, 8 anos depois de o ter conhecido, o Bill continua a ser o meu ídolo.

Não só por tudo isto, não só por ver nele o reflexo daquilo que sinto muitas vezes (a frase “I just don’t fit in, man. I don’t fit in anywhere. That’s my problem”, mais do que uma transição entre assuntos num set de comédia, é o resumo da vida de todos os desajustados como eu), mas por ser uma voz tão honesta quanto dissonante num meio em que a fama é a meta e onde não interessa como a cortas. E claro que o Bill almejava a fama. Todos os artistas a querem, mas num meio em que tantos se corromperam para terem, o Bill conseguiu-a sem deixar de ser ele, sem comprometer os seus princípios e sem vender a alma ao diabo. Sim, muita da sua fama foi póstuma, mas isso não interessa, porque, tal como ele dizia, “isto é só uma viagem e somos todos uma só consciência a experienciar-se subjectivamente. Não existe morte, a vida é só um sonho e somos a imaginação de nós mesmos”. E a ser verdade, sinto-me realizado por partilhar a minha consciência com a do Bill. Para sempre. Parabéns Bill, hoje é verdadeiramente o dia em que Rei faz anos.

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