Este mundo está demasiado Huxley
A conhecida obra literária Admirável Mundo Novo (Brave New World), da autoria de Aldous Huxley quase que dispensa apresentações. Publicada em 1932, descrevendo uma sociedade totalitária, dividida por castas e obcecada e dominada pelo progresso científico, impondo uma felicidade artificial quase que obrigatória aos seus cidadãos, faz com que esta seja uma das mais aclamadas obras da literatura contemporânea sendo ainda hoje muito falada e debatida por leitores em todo o mundo. O segredo da imortalidade desta obra está no modo como Huxley usa uma escrita fluída, baseando-se numa ficção científica não muito abusiva e com bastantes argumentos e fundamentos científicos por detrás. O facto de ter frequentado o curso de medicina e ter sido obrigado a desistir devido ao aparecimento de um distúrbio visual, ajudou muito na escrita, na criação deste universo e, por conseguinte, no sucesso de toda a sua obra.
Para Huxley tudo apontava que com o passar dos anos, isto é, à medida que a tecnologia e a ciência progredissem, com o aumento populacional e também com base nos acontecimentos políticos e sociais vividos na altura, a sociedade mundial tenderia a ficar igual àquela retratada em Admirável Mundo Novo. Huxley fez questão de escrever um pequeno livro de ensaios bastante minuciosos e pertinentes sobre a sua Magnum Opus, a que chamou Regresso ao Admirável Mundo Novo (Brave New World Revisited) publicado vinte e seis anos depois, em 1958. Neste pequeno livro, Huxley faz uma abordagem geral no que aconteceu nos últimos anos através de reflexões profundas e com base em teses filosóficas defendidas por ilustres filósofos como David Hume, John Dewey, John Stuart Mill, Bertrand Russell, entre muitos outros, procurando assim mostrar como as profecias retratadas na sua obra começam a ficar assustadoramente cada vez mais evidentes. Huxley possui ainda outro livro bastante semelhante, mas escrito como se fosse uma utopia e publicado em 1962, A Ilha (The Island), cuja acção da história é decorrida numa ilha isolada onde o espaço e personagens são semelhantes às que encontramos em Brave New World.
De facto nestes vinte e seis anos, entre 1932 e 1958, muita coisa aconteceu. Após a crise de 1929 e o New Deal de Franklin D. Roosevelt, que conseguiu repor novamente a estabilidade económica não só nos Estados Unidos como em grande parte do mundo, na Alemanha Hitler chegava ao poder em 1933 tendo contribuído para uma das eras mais negras de toda a história da humanidade. Uma segunda grande guerra, mais longa e com muito maior número de vítimas e de ataques do que a primeira, fez com que o Nazismo na Alemanha e o Fascismo em Itália ruíssem. As duas bombas atómicas lançadas que arrasaram Hiroshima e Nagasaki provaram como nem sempre podemos usar a ciência para o bem e que até podemos ter a capacidade de nos auto destruir. No pós-guerra o mundo ficaria dividido em dois, a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética intensificava-se. Seria esta uma boa altura para Huxley fazer uma breve reflexão sobre a sua obra? Vendo bem, foram de facto muitos os acontecimentos que influenciaram o mundo neste espaço temporal. Algumas das evidências tornar-se-iam em profecias.
Quando se fala em Brave New World, há sempre outro livro que aparece quase como se fosse a sombra deste, ou vice-versa, como se ambos andassem de mãos dadas de um lado para o outro. O célebre 1984, da autoria de George Orwell, escrito anos mais tarde (publicado em 1949 e num contexto diferente), descreve uma sociedade dominada por um regime altamente totalitário que controla o país e os seus cidadãos. Não deixa de ser curioso que Huxley faça também inúmeras referências à obra de Orwell se bem que as diferenças entre ambas são evidentes. Por exemplo em 1984, o receio de Orwell era de que as pessoas no futuro fossem impedidas de ter acesso à informação por completo e apenas e só àquela que lhes fosse imposta. Para Huxley o receio era de que as pessoas desprezassem a informação tendo ainda assim todo o seu pleno acesso, mas tornando-se indiferentes perante esta, seja qual fosse a sociedade. Ou seja, para Huxley tudo aconteceria sem ter haver implicitamente uma ditadura política mas sim uma ditadura imposta quase sem darmos por ela. Mesmo assim, pouco depois de 1984 ter sido publicado, Huxley escreveu uma carta a Orwell com elogios à sua obra concluindo que o universo descrito é semelhante ao de Brave New World mas que no fundo a sociedade em geral tanto nos regimes totalitários do futuro iriam tender para aquilo que se vive em Brave New World. As ditaduras futuras iriam ter como principal arma a ciência, usando-a por exemplo para pressões psicológicas ou para o condicionamento das populações através de estímulos, à semelhança da famosa experiência de Ivan Pavlov com o comportamento dos cães. No entanto, grande parte dos regimes totalitários da altura, mais concretamente os de leste, acabaram por ruir. O mundo ocidental acabou por se impor, mas isso não significou propriamente que a liberdade estaria pronta a dominar o mundo. Aliás, Huxley conclui mesmo que apesar destas ditaduras existirem, o mundo ocidental estava sujeito a sofrer consequências de uma ditadura económica que poderia ter maior poder e efeitos sobre as populações do que os regimes de leste. Curiosamente, o resultado está à vista.
Um dos alertas feitos por Huxley neste livro de ensaios é o do crescimento da população no futuro, na altura existiam cerca de 2.5 mil milhões de pessoas no mundo e que o crescimento seria gradual. O excesso de organização das sociedades juntamente com o crescimento gradual da população podem ser determinantes para que o mundo caminhe para aquele que existe em Brave New World. Huxley faz uma grande abordagem sobre temas como a persuasão química de substâncias que se tornaram semelhantes à Soma, a substância que em Brave New World dava aos seres humanos a felicidade plena, como por exemplo o LSD (curiosamente Huxley retrata a sua experiência com este tipo de drogas usando-se a si mesmo como cobaia em As Portas da Percepção (The Doors of Perception) publicado em 1954); o modo como a propaganda e as lavagens cerebrais poderiam ser feitas pelos regimes totalitários, apontando também o que falhou nos regimes ditatoriais na Alemanha e Itália que fez com que não perdurassem tanto tempo como os regimes totalitários de leste; o modo como a tecnologia nos poderia condicionar de modo a ficarmos condicionados por esta e não o contrário; o poder dos slogans, que faria com que seguíssemos apenas o seu impacto e não pela informação por detrás destes, a tendência do ser humano na busca de uma informação facilitada e com pouco detalhe; a complacência dos jovens no voto e o caminho para o autogoverno; entre outros pontos bastante pertinentes e discutíveis. A verdade é que algumas destas coisas hoje são bem notórias e, apesar de vivermos naquilo a que costumamos designar democracia, um regime político que tem como base a liberdade de expressão e a igualdade de direitos entre cidadãos, não somos assim tão livres quanto isso. O pior é que nem damos conta de nada, ou damos?
Vejamos: hoje somos cerca de 7.5 mil milhões de seres humanos no mundo e sente-se já alguma organização para controlar este crescimento por parte de governos de alguns países; as taxas de abstenção são elevadas e tendem a ser cada vez maiores à medida que os tempos avançam, a tendência para o autogoverno aumenta de ano para ano; a internet dominou-nos e se queremos manter contacto contínuo com alguém seja a longa ou a curta distância temos que estar agarrados às redes sociais a todo o custo; este ano, por exemplo, uma simples aplicação de telemóvel fez com que meio mundo ficasse em histeria, de um lado para o outro, de olhos fixos nos ecrãs completamente controlados, indo à procura de criaturas imaginárias para sítios que lhe fossem indicados; embora haja controlo na comercialização de drogas, são cada vez mais as substâncias químicas sintetizadas com o propósito de ter o efeito semelhante ao da Soma (refiro-me mesmo a fármacos comerciáveis e de fácil acesso, não às chamadas drogas vulgares porque o seu consumo haverá de ser sempre “politicamente incorrecto”); nos Estados Unidos, país que se assume como “Líder do Mundo Livre”, um tipo sem qualquer tipo de experiência política, especialista na distorção da argumentação, perito em propaganda e que quer construir um muro, ganha umas eleições usando um slogan forte (Make America Great Again) e tendo dito em campanha coisas tão bacocas e primárias como “A minha beleza é que sou muito rico” ou “Faz muito frio em Nova Iorque, precisamos do aquecimento global” ou ainda “Se não fosse pai da minha filha provavelmente namoraria com ela”. Todas estas pequenas coisas fazem-nos crer que estamos numa situação cada vez mais semelhante à que se passa em Brave New World. Por outras palavras, não há dúvida de que este mundo está demasiado Huxley.
Por fim, “resta-nos ainda alguma liberdade”, dizia Huxley quando escreveu este livro em 1958, “É verdade que muitos não parecem valorizá-la”. Estas palavras são mais fáceis agora de entender do que na altura. Parece que estamos já demasiado condicionados a todos estes factores e o facto de vivermos (e falo mais em nós, mundo ocidental) em regimes democráticos, a autogestão, o eclipse dos números da economia sobre a condição humana, a intensificação das cargas laborais, a influência da tecnologia sobre nós e não o contrário, começam-se a notar cada vez mais. A verdade é que passados mais de oitenta anos depois da sua publicação, Brave New World continua a ser lido, e continuará. Continua a influenciar séries, filmes e outros livros, e continuará. Continua a ser evidenciado e debatido, e continuará. Se Aldous Huxley hoje regressasse de novo ao Admirável Mundo Novo, teria um livro bastante mais volumoso com mais referências e fundamentos, mas sempre com a aproximação da realidade vivida no livro à realidade. Sendo o título inspirado num dos versos da peça A Tempestade de William Shakespeare, “O brave new world, That has such people in’t!”, por algum motivo a tempestade se intensifica à medida que o tempo avança. Esta que é, gradualmente, toda uma admirável e nova tempestade.