IC3PEAK: “Era uma vez e não era uma vez…”
Não podemos acabar o ano sem direcionar os holofotes para a banda de música eletrónica russa IC3PEAK. A banda tem sido alvo de muita polémica na Rússia e neste momento está a ser perseguida pelo governo, depois de ter sido censurada pela primeira vez em 2016, quando viu um dos seus videoclipes ser banido do YouTube. Em termos sónicos, podemos inseri-los na cena avant-pop, entre a iraniana Sevdaliza e a islandesa Björk. O seu último álbum saiu no passado dia 28 de setembro: abram a porta ao CKA3KA (“Conto de Fadas”).
Nastya Kreslina e Nick Kostylev são a dupla por detrás deste nome, que assume produzir terror audiovisual e ópera futurista. Começaram por actuar nas W17chøu7, promotora de festas witch house, tendo à sua volta uma mágica aura de dark ambient drone com indícios de hip hop, apesar de nunca terem pertencido a esta label nem se identificarem com nenhum género musical: “para nós, a beleza está na luta para criar novos símbolos e significados. Gritos e barulho são ambas linguagens internacionais. Nós não temos um manager – conseguimos gerir-nos. Nós não temos uma label – para que é que precisamos de alguém a dizer-nos o que fazer? Não trabalhamos com produtores – escrevemos, produzimos e realizamos os nossos vídeos por conta própria. Não lançamos vinis – publicamos música online.” As suas performances eram acompanhadas por uma experiência de VJing, tipicamente DIY (do it yourself).
O seu primeiro EP – Substances – data de fevereiro de 2014. É etéreo, dá-nos sonoridades de eletrónica experimental e nuances de vaporwave. Em junho do mesmo ano avançam com Vacuum, outro EP, que descrevem na sua página do Bandcamp como sendo “sobre a luta com os teus próprios medos e desejos. Sobre manter a tua identidade ou encontrar uma nova, e a rotação entre os espaços materiais e virtuais. E se não existisse nenhum eu real e o teu testemunho virtual é o único eu que realmente existe?”. Nesse trabalho, sente-se a energia techno retro dos anos 90 nos instrumentais. Em fevereiro de 2015, surge o homónimo IC3PEAK, já a entrar numa onda industrial; em dezembro do mesmo ano lançam より多くの愛 – colectânea de edições ao vivo na festa Skotoboynya (“matadouro” em português).
O seu primeiro álbum de longa duração, FALLAL, é lançado em maio de 2016 e encontramos nele a música “Go With The Flow”, cujo videoclipe é retirado do YouTube pelas autoridades russas por fazer “propaganda gay” – na Rússia, a homofobia é legislada desde junho de 2013 (com o propósito de proteger as crianças da negação dos valores de família tradicional, a promulgada lei proíbe a exposição e a propaganda de relações sexuais não tradicionais a menores). No vídeo, filmado entre Moscovo e São Paulo, assiste-se ao beijo de dois jovens, um caucasiano e outro afro-descendente, aparecendo ainda uma drag no grupo que o protagoniza, o que foi suficiente para o Kremlin o eliminar automaticamente da Internet. No seguimento da censura, a banda fez a seguinte declaração por email ao Thump (publicação expirada, pertencente à Vice Media e que se destinava à cultura de música eletrónica): “estamos numa situação difícil na Rússia. Nós filmámos este clipe com lindos e talentosos [membros] da comunidade LGBT do Brasil e da Rússia, como forma de dizer pessoalmente “vão-se foder” ao nosso governo e às partes da sociedade que ainda consideram a cultura LGBT “perigosa”. Queremos que todos tenham a oportunidade de ser quem são sem medo. Somos flores raras a tentar sobreviver numa selva de pedra. Fomos criados pela natureza e somos lindos e fortes. Estamos a sair da escuridão para alcançar a luz. Estamos aqui, existimos e brilhamos. Todos os limites são relativos. Defini-los e superá-los é o nosso dever.”
Continuada a caminhada, lançam em novembro de 2017 Сладкая Жизнь / Sweet Life. Este álbum, maioritariamente em russo, tem já uma forte influência do trap, com uma atmosfera escura que o acompanha. A sua segunda música, “Грустная Сука” (“Sad Bitch”), um hino de poder feminino entoado por Nastya sobre uma escura batida de trap, conta com um videoclipe produzido por Maria Vladimirova que possui uma presença muito forte da cultura gótica, assim como alguns traços que poderemos associar à mitologia eslava – por exemplo, o Conde Drácula (representado por Nick, figura alta e pálida, e o sangue engarrafado). Aqui, nasce o mundo encantado de IC3PEAK como o podemos conhecer hoje.
Apresentaram CKA3KA este ano, um álbum de oito faixas carregado de trap e rap tenebrosos, guarnecido com melodias dramáticas. Abrimos a caixa de música com “Считалочка” (“Counting Rhyme”), onde a voz da cantora nos embala com a sua poesia e não há por onde fugir, ouvem-se sussurros e chilreios de pássaros acabando com uma paisagem sonora de uma floresta. A segunda faixa, que dá o nome ao álbum, tem videoclipe e, não fosse eu amante da liberdade, diria que é obrigatório ver o vídeo a primeira vez que a ouvimos (vejam-no antes de lerem ou perdoem-me por arruinar a surpresa): um verdadeiro conto de terror eslavo animado! Uma casa abandonada, fotografias antigas, bonecos espalhados e uma das fotografias vive: do lado esquerdo Nastya com tranças ao estilo de Wednesday Addams; do lado direito Nick; no meio Baba Yaga – figura arquetípica, remete-nos para o conto russo Valissa, a sabida, cuja leitura aconselho avidamente – que faz a menina limpar a casa como na antiga estória. O vídeo continua dentro do grotesco e do bizarro, prosseguindo a narrativa análoga ao conto folclórico: ao atravessarmos a escuridão encontramos a trilha para a iniciação, conhecemos o bem e o mal, aprendemos a ouvir e a seguir a nossa intuição.
Este universo mitológico é contemporâneo, a floresta transformou-se numa selva urbana, as árvores são prédios – todos eles idênticos, na arquitetura típica comunista –, parques infantis ermos numa cidade distópica arruinada por uma guerra (alusão a Chernobyl), há muros com arames farpados (houve no passado, continua atual e é também profético). Segue-se “Привет” (“Hello”), o canto místico da narradora omnisciente, ferida e no contra-ataque, que não pára de nos levar para este mundo fantástico, obscuro, com referências mágicas e de feitiçaria. “Красота и сила” (“Beauty & Power”), começa e acaba com o mesmo verso: “tudo o que parece importante para nós também acabará um dia”; há um padrão nas ideias, que se vão enfatizando: são elas o tempo, a impiedade, a beleza, a força, a frieza e a escuridão. A “Полчас” (“Half an Hour”) é uma lamentação por não poder estar mais com a pessoa amada – “ao pé de ti eu quero morrer / mas sem ti eu não quero viver” – curta canção eufónica com uma batida característica do heavy metal, que termina com um rasto de sangue.
A próxima música, “Смерти больше нет” (“Death No More”), não pode ser separada do seu vídeo. É aquilo a que podemos chamar de terrorismo audiovisual. Como se nos fosse transmitido por altifalantes de guerra, aqueles usados para a divulgação de propaganda, o refrão ecoa um aviso de imolação com querosene em frente de toda a Rússia (no clipe, os meios de comunicação reportam os acontecimentos). Este hino de revolta é-nos anunciado dum modo cicioso por alguém que já passou o seu tempo na Internet e vai agora partir para rua – nas imagens temos o par, primeiramente a comer carne crua à frente do Mausoléu de Lenine e adiante em cima de polícias de choque defronte do antigo quartel-general da KGB. A ponte entre os versos e o refrão é cantado por uma doce voz infantil – a beleza desta voz é acompanhada por imagens da imponente capital da Federação Russa –, ela está envolvida em ouro mas submersa num pântano, o seu sangue é puro como a “mais pura das drogas” e nas suas costas está o Kremlin (complexo fortificado no centro da capital, onde reside o presidente, e nome igualmente usado para se referir ao governo) – “tu vais ser levado pela polícia com os outros da praça”.
De novo as marcas vampirescas de Drácula, um caixão e uma cabeça que, cortada, ainda canta. À frente da majestosa fonte Druzhba Narodov, fumam um charro e fazem acrobacias e, depois de beberem sangue, mergulham/afogam-se no rio Moscova. No plano seguinte estão num carrossel que condiz com o mundo fantástico da Catedral de São Basílio. Agora, nas escadas do Palácio Estatal do Kremlin, já não temos a jovem que ameaça incendiar-se, vêem-se apenas as marcas de um incêndio no chão enegrecido e o fumo a dissipar-se. O vídeo que dá imagem a esta sátira política é também fruto do génio de Maria Vladimirova. Não é fácil desligarmo-nos deste sonho. Numa vaga mais eurodance, em “Таблетки” (“Pills”), a heroína assina o seu testamento. Saturado de tensão, “entre a noite e o dia”, fecham com chave de ouro em “Слезы” (“Tears”). Sintetizadores tecem uma manta que faz acalmar os ânimos, para trazerem a despedida, o fim.
Uma dupla de peso, que conta com quatro anos de metamorfoses, cresceu – as 150 cópias do LP do seu novo álbum venderam-se num ápice. Atualmente estão a ser perseguidos pelo governo – e não são os únicos: também o rapper Husky foi detido – os concertos estão a ser cancelados e invadidos pelas forças policiais. IC3PEAK contam à BBC que os donos das salas de espetáculo preferem que os músicos não toquem a ter problemas com a polícia. Continuam sem perceber o motivo da censura, pois nunca tiveram nenhuma informação de agentes do Estado que justificasse a anulação dos concertos. Os clubes não responderam às perguntas do jornal sobre o caso e o Kremlin afirma não ter nada a ver com o assunto. Esta perseguição começou depois do lançamento do vídeo de “Смерти больше нет” e a banda julga que se está a atravessar uma época de guerra cultural que oprime os artistas; no entanto, desconhecem a semente desta luta. Questionam-se se o governo estará com medo de que a sua música possa revoltar as pessoas contra o sistema e respondem às suas dúvidas: “então apressam-se para assumir o controle da situação, agindo com seu método obsoleto e soviético”. No entanto, a banda acredita que poderá surgir algo positivo com estas formas de censura, pois os media nacionais e internacionais, entre outros artistas, têm-lhes dado apoio.
Não se trata apenas duma manifestação de arte por parte desta dupla que surge no underground russo e explode na Internet com milhões de visualizações e streams. Só no último mês, mais de dez concertos foram cancelados. No sábado passado, a banda publicou na história do Instagram uma atualização dos acontecimentos recentes, agradecendo aos fãs que aparecem (sabendo ou não dos cancelamentos) e que lhes dão sustento, incluindo nestes todas as pessoas que têm dado voz à sua luta: “eles querem-nos silenciar, mas em vez disso nós falaremos o mais alto possível”. O que os IC3PEAK estão a fazer é resistir a um sistema opressor que tem acabado com a liberdade de expressão de muitos artistas. Aqui faz-se história, e não são só as de encantar.
Texto de Sofia Seixo Garrucho