Livros. “Sou Um Crime”, de Trevor Noah, e a arte de saber rir de nós mesmos
Por esta altura Trevor Noah não é mais o nome surpreendente que substituiu Jon Stewart à frente do The Daily Show, um dos programas mais influentes dos Estados Unidos da América. Recebido com surpresa, a frescura de Trevor Noah através das suas opiniões fortes (à semelhança do seu antecessor) já lhe granjearam a aceitação que, mais tarde ou mais cedo, lhe seria devida. Mas não é novidade essa sua capacidade de ir contra as probabilidades. Por ora, falamos já de uma das 100 pessoas mais influentes do Mundo pela revista Time em 2018. Desse homem chega-nos agora Sou Um Crime – Nascer e Crescer no Apartheid, livro autobiográfico lançado pela Tinta-da-China.
Trevor Noah nasceu em 1984, numa África do Sul em pleno Apartheid, mergulhada em racismo, crimes e falta de oportunidades, mas onde sobretudo ou se era preto, ou se era branco, e a cor definia a vida a que se poderia ambicionar. Ora, Trevor é mestiço, fruto de relação entre uma mãe negra, sul-africana (xhosa, para ser mais exacto) e pai branco, suíço. Se numa África do Sul separada pela cor era importante tê-la, não a ter era um motivo ainda maior de ostracização.
Para combater esse facto, Trevor desde cedo aprendeu a ser um camaleão, por necessidade, e para isso muito contribuiu os vários idiomas que aprendeu a falar desde cedo (e o inglês que domina na perfeição por imposição da sua mãe, que a considerava a “língua do dinheiro”). Se lhe falassem em Zulu, ele responderia em Zulu. Se lhe falassem em Tswana, ele responderia em Tswana. «A língua transporta consigo uma identidade e uma cultura, ou, pelo menos, a percepção de uma identidade e de uma cultura. Uma língua partilhada sugere: “somos iguais”. Uma barreira linguística diz: “somos diferentes”.»
Das histórias de uma infância complicada e na solidão, rodeado apenas da família e de livros, a comédia de Trevor, presente neste seu livro, revela a sensibilidade de alguém que não faz piadas com a sua experiência de vida, mas antes a relata sob um ponto de vista que procura o lado cómico. Não são muitos os que têm a capacidade ou ousadia de brincar de forma inteligente desconstruindo acontecimentos negativos dando-lhe uma outra perspectiva. O humor torna-se assim um caminho para que possamos aprender a conviver com temas outrora “proibidos”.
Sou Um Crime é, portanto, a história de quem desde cedo desafiou o status quo, a sociedade que o rodeia e ideias pré-estabelecidas (preconceitos). É a história de alguém que nunca pertenceu a lado nenhum e que teve de aprender a lidar com isso para poder, de facto, poder estar em algum lado. É o relato de alguém que foi crescendo procurando o seu espaço e que com o seu humor mordaz e inteligência foi desafiando uma sociedade que ainda não estava (nem está) preparada para si e para o que representa, passados tão poucos anos do Apartheid.
É também interessante, neste aspecto, ver o documentário sobre Trevor Noah, You Laugh But It’s True (2011), que além de nos mostrar alguns dos espaços da infância de Trevor, como a casa da avó, tantas vezes referida neste livro, acompanha também o humorista antes do lançamento do seu espectáculo a solo, Daywalker. Nesse documentário podemos ver opiniões pouco simpáticas de humoristas mais velhos (numa indústria que apesar de tudo dá ainda os primeiros passos na África do Sul), que apelidam Trevor Noah de “arrogante” por este tocar em assuntos “sérios” nos seus espectáculos, e ousar alcançar a fama com tão tenra idade.
Sou Um Crime não é apenas este relato em várias histórias de alguém que cresceu durante o apartheid e desafiou as odds com a sua inteligência e confiança. É uma carta de amor eterno a sua heroína, ao seu ídolo, a sua mãe, Patricia, a quem dedicou um espectáculo de stand-up intitulado de Son of Patricia, mas que é também presença ao longo de toda a sua obra, e que merece várias referências nos seus espectáculos. Esta mulher guerreira – que até a tiros sobreviveu -, uma crente religiosa cuja fé fazia (e faz) ultrapassar tudo, “escolheu o destino” para o seu filho ao não lhe “escolher” nenhum. Na tradição Xhosa, é habitual que os nomes das crianças carreguem significados como por exemplo Patricia Nombuyiselo Noah, que significa “Aquela que dá”. Ora, Trevor não significa absolutamente nada na cultura Xhosa. É apenas um nome, como tantos outros, mas que para todo o contexto da história de Trevor, foi o trilhar de um caminho que só poderia ser feito por ele mesmo, com as suas escolhas, com as suas vitórias e sem “destino” pré-traçado. Onde isso o conduzirá? Não se sabe. Ainda assim, que por ele já foi conquistado é auguro de algo que só dependerá de si para continuar a ser marcante, mas sobretudo, livre. Uma obra envolvente de um homem inspirador e brilhante.