“Pintado com o Pé”, crónicas e ensaios de Djaimilia Pereira de Almeida

por Miguel Fernandes Duarte,    12 Maio, 2019
“Pintado com o Pé”, crónicas e ensaios de Djaimilia Pereira de Almeida

Djaimilia Pereira de Almeida é uma das principais promessas e certezas da literatura portuguesa contemporânea. Luanda, Lisboa, Paraíso, o seu segundo romance, publicado em 2018, foi, até, considerado o melhor desse ano, aqui na Comunidade Cultura e Arte.

Pela Relógio d’Água publica agora Pintado com o Pé, uma colecção de textos dispersos que tem desde pequenas crónicas, agrupadas na primeira secção do livro, Dispersos – escritas entre 2013 e 2019, algumas inéditas, outras previamente publicadas em meios como o jornal Observador ou a revista literária brasileira Quatro Cinco Um – a dois ensaios (na verdade versões revistas das suas teses de Doutoramento e Mestrado em Teoria da Literatura), Inseparabilidade e Amadores.

Não é, portanto, com grande surpresa que as duas secções do livro sejam tão distintas entre si. Enquanto as pequenas crónicas retêm em grande parte o tom que a autora adopta nos seus dois romances (principalmente no primeiro), os dois ensaios, dado o seu carácter académico, apresentam-se bem mais ininteligíveis para o leitor comum, não tão versado nas temáticas. Não é que sejam imperceptíveis, longe disso, a autora faz até um bom trabalho de encadeamento do seu raciocínio (com ocasionais resumos do pensamento explanado até ao momento), o que permite que mesmo esses tais leitores menos versados acompanhem a tese exposta. Mas, com o jargão necessário à sua argumentação, é inegável o carácter bem mais cerrado sobre si mesmo, próprio de uma dissertação.

Djaimilia Pereira de Almeida

Em Inseparabilidade, Djaimilia defende, basicamente, que devemos ajustar os nossos julgamentos à vida e circunstâncias de cada um. O argumento fatalista de que “uma vez que seja o que for que façamos ou nos aconteça está pré-determinado, não somos propriamente agentes” leva a autora a testar a hipótese de qualquer agente poder agir de acordo com certas finalidades; de o caminho, ao contrário de fechado, como sugere o fatalismo, estar aberto. Mas, abrindo-se essa possibilidade, corre-se o risco de se assumir que, se todos podemos fazê-lo, todos devemos fazê-lo. Aqui entra a noção de inseparabilidade de uma pessoa em relação à sua vida. A vida de cada agente, dependendo das circunstâncias de cada um, não podendo ser utilizada para fechar o caminho de forma fatalista, pode, no entanto, dada a nossa inseparabilidade dela, ser usada como critério de justiça acerca do modo como entendemos e tratamos uma pessoa.

Essa mesma inseparabilidade da nossa própria vida está inegavelmente presente ao longo dos restantes textos do livro, já que todos eles, nem que seja por se focarem em observações suas, dão com a vida da própria autora. Entre as crónicas diversas há então reflexões sobre o momento em que o seu irmão descobriu, aos cinco anos, no jardim-de-infância, que tinham cores diferentes, sobre a vida adulta (“O que me aflige e alegra na vida adulta é não poder controlar completamente a mulher que todos os dias me vou tornado e ser, em simultâneo, a única pessoa que pode responder por ela”), sobre passar em locais onde já se viveu e onde nunca mais se voltou, sobre a obra de James Baldwin, sobre os perdidos e achados da estação de comboios do Rossio, sobre deixar de sublinhar livros (por se ter apercebido, ao relê-los, que já não se identificava com o que anteriormente havia sublinhado), sobre o momento em que se perde a capacidade de escrever e se deixa de conseguir “pensar com as mãos”, tema que retoma numa das mais belas crónicas, sobre um homem que, todas as quartas-feiras, põe por escrito as memórias que o amigo não é já capaz de escrever, afectando ele próprio o relato com a caligrafia que usa ao escrevê-las:

“Se Amílcar está impaciente ou tem um problema qualquer, o ditado cerimonioso de José sobre a passagem das estações passa para o caderno numa caligrafia convoluta, de cabeça enrolada.”

Se há coisa que sobressai ao longo dos mais variados textos é essa preocupação com o uso da nossa voz para dar voz a outros. Djaimilia questiona o que tem em comum com outras mulheres negras, e de que forma as representa, da mesma forma que fala sobre a incapacidade de os mais variados membros da sua família seguirem com as receitas tradicionais daqueles que os vão deixando (“As nossas mesas de Natal estão repletas de simulacros da habilidade e do critério de gosto dos nossos mortos”). No fundo, regressa tudo a essa noção de inseparabilidade. Somos o produto das nossas circunstâncias e não há como não contaminarmos aquilo que fazemos com e pelos outros com aquilo que somos nós, também.

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