Memorial de um Nobel
Nascia, nesta data, há exatamente 97 anos, aquele que viria a ser o, até agora, único escritor de língua portuguesa detentor do mais alto galardão da literatura universal: o Prémio Nobel, que lhe foi atribuído em 1998. Refiro-me, evidentemente, a José Saramago.
Filho e neto de camponeses, nasceu a 16 de novembro de 1922, na aldeia ribatejana de Azinhaga, que serviu de génese a Levantado do Chão, um dos seus romances fundamentais, publicado em 1980, o qual retrata a luta do povo de uma aldeia face às forças opressoras, descrevendo um ambiente de miséria rural extrema.
José Saramago chegou à literatura após um caminho longo e singular. Ou melhor, à escrita, pois a curiosidade pelos livros sempre a teve, começando a ler, ainda jovem, à noite, na Biblioteca das Galveias. Antes de escritor, José Saramago foi desenhador, funcionário da saúde e providência social, tradutor, editor e, até, jornalista. Publicou, então, o seu primeiro livro em 1947, intitulando Terra do Pecado, e aí iniciou a viagem literária que ainda hoje continua, ao entregar a sucessivas gerações um legado de valor incomensurável, pois, afinal, enquanto a obra é lembrada, o homem sempre vive.
Ora, falar de José Saramago, é falar de alguém que foi (e ainda é) mais que escritor, mais que Prémio Nobel. Foi, antes de tudo isto, o homem que desassossegou um país inteiro ao usar a pontuação de forma tão idiossincrática e ao construir narrativas que são a osmose entre a utopia e a realidade, o Céu e o Inferno, lugares que afirma em Memorial do Convento que, para serem inventados, não seria preciso mais que conhecer o corpo humano.
Mais, José Saramago foi alguém dotado de uma visão e compreensão do mundo quase que inquestionáveis, alguém que, em pleno século XX, já adivinhava o precipício axiológico para que nos encaminhávamos e, por isso, nos alertava. Isto porque compreendia o fenómeno que se aproximava ainda antes sequer de se sedimentar o primeiro grão que serviria de útero às rochas desse mesmo precipício. Saramago era, contudo, um homem simples como os demais, ainda que dos mais sábios do seu tempo.
Ergueu uma biblioteca que nem Atena nem Minerva conseguem, hoje, alcançar ou explicar. Foi um existencialista sem escola, ou melhor, que construiu a sua própria escola, ao beber das ideias de muitos dos que o precederam, pois, para ser um bom escritor, há que ser, previamente, um bom leitor. De entre a sua bibliografia, podemos encontrar alusão a temas como o sentido da vida (em A Viagem do Elefante), a identidade (em O Homem Duplicado), a fulcralidade da morte (em As Intermitências da Morte) ou a letal cegueira ideológica que, por vezes, provém da religião (Caim). Saramago partiu da Estátua rumo à Pedra, como um dia explicou numa conferência em Itália, escrevendo sobre as temáticas mais abrangentes e fundamentais da humanidade e, posteriormente, dissecando sobre cada microscópico grão que compunha a pedra, enquanto figura lata.
Por tudo isto, José Saramago merece ser lembrado e homenageado como o epítome da literatura contemporânea portuguesa, dado ser, muito provavelmente, o escritor que apresenta o património literário mais vasto e multifacetado aqui, onde o mar se acabou e a terra espera*.
*José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis. Porto Editora, 24ª edição, 2016, p.494.
Texto de Matilde Bianchi Sampaio
(artigo editado às 16h10 de Sábado)