Ano Saramago. “Ensaio Sobre a Cegueira” e “Ensaio Sobre a Lucidez”: a arte de calar os cães

por Maria Pinto,    18 Outubro, 2022
Ano Saramago. “Ensaio Sobre a Cegueira” e “Ensaio Sobre a Lucidez”: a arte de calar os cães
Capa do livro Ensaio Sobre a Cegueira (ed. Porto Editora)
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Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago. Ao longo de 2022, e até Novembro, mês em que o escritor faria o seu 100.º aniversário, a Comunidade Cultura e Arte lançará um total de 11 artigos, um por cada mês, sobre 17 livros do escritor.

Em 2006, a autora Ursula K. Le Guin escreve um artigo para o The Guardian sobre o Ensaio Sobre a Lucidez, onde confessa que tentou ler o livro companheiro, Ensaio Sobre a Cegueira, duas vezes antes de o conseguir concluir. A primeira tentativa foi interrompida pela estranheza das frases longas, e a segunda, por medo: “Later I tried again, went further, and quit because I was scared.”

Ensaio Sobre a Cegueira, lançado em 1995, conta a estória de uma sociedade que aos poucos vai ficando infetada por uma cegueira branca. Para controlar a epidemia cada vez maior, os já infectados são obrigados a isolarem-se, como prisioneiros, deixados à sua sorte. Com a epidemia a alastrar-se, seguimos de perto a vida de diversas personagens, nomeadamente a Mulher do Médico que, sem nenhuma explicação, é a única que mantém a sua visão.

A ideia inicial do livro, que demorou dois anos a ser concluído, parte da simples pergunta “e se fossemos todos cegos?”, a que Saramago responde quase automaticamente “mas nós somos todos cegos”. Ao contrário do livro, não podemos considerar-nos todos fisicamente cegos, algo comum numa parte da nossa sociedade, sendo apenas mais uma caraterística das inúmeras que nos rodeiam. Não, o tipo de cegueira de que Saramago fala é um tipo de cegueira única, e, mais importante, pejorativa: é a criação de um muro que nos coloca numa zona de conforto, e nos cobre o mundo exterior, o real, é a vontade de não querer compreender, de não nos querermos incomodar. Não é que sejamos profundos ignorantes por falta de conhecimento. Apenas decidimos não querer ver. É a escolha fácil: entre redes sociais, realidades virtuais e celebrações mundanas, são inúmeros os estímulos que recebemos para entrarmos num estado entorpecido, a pactuar com a máquina que anda para a frente. Mas para onde?

Capa do livro “Ensaio Sobre a Lucidez” (ed. Porto Editora)

Num cenário em que a visão, a que estamos tão habituados, deixa de existir, é impressionante a rapidez com que Saramago descreve a perda de humanidade, retratando situações atrozes não apenas em nome da sobrevivência mas, principalmente, em nome do poder.     

Não conhecemos nenhum nome de nenhuma personagem que nos é apresentada, nem tão pouco o seu passado, apenas pequenas deduções que nos são dadas pelas restantes personagens à medida que se começam a conhecer. Esta escolha dá o poder ao leitor de ser também um pouco cego durante a leitura, tateando e fazendo o reconhecimento de quem são aquelas pessoas. Entre o Rapazinho Estrábico, o Primeiro Cego, a Rapariga dos Óculos Escuros, o Velho da Venda Preta, o Médico e a Mulher do Médico, é interessante pensar que esta última, talvez a que tem de todos os nomes o menos pessoal, é a personagem que acaba por ser muito mais do que simplesmente a mulher de um médico. Líder, sem o desejar, é a que comanda a ação, demonstrando sempre uma compaixão justa em cada tomada de decisão. 

É engraçado como há já tecnologia para resolver os problemas dos olhos mas nenhuma para resolver a cegueira da alma. Talvez porque, não sendo fácil, tem uma solução simples. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”, diz no Livro dos Conselhos, a epígrafe de Ensaio Sobre a Cegueira. Quando por fim os cegos se libertam, são surpreendidos por uma sociedade colapsada, violenta, sem escrúpulos. É quando a Mulher do Médico decide ir sozinha buscar mantimentos para o grupo que, assoberbada com o peso físico que carrega e o peso do que viveu nos últimos dias, cai ao chão e chora. Nesse momento surge o Cão das Lágrimas (esse cão Saramaguiano), que se aproxima e lambe a cara da Mulher do Médico, secando-lhe as lágrimas. E é neste momento que podemos pensar que estas duas personagens, que serão das poucas que permaneceram com a sua visão, encontraram uma linguagem comum, para lá do subjetivo bem e mal, de compaixão.

Passados uns anos, em 2004, voltamos a esta sociedade com Ensaio Sobre a Lucidez. Continuamos no mesmo registo, e são-nos apresentados partidos políticos sem nome, apenas PDD (Partido da Direita), PDM (Partido do Meio) e PDE (Partido da Esquerda).

Talvez como consequência do passado vivido por esta população, podemos dizer que Ensaio Sobre a Lucidez começa com a apresentação de uma sociedade que, ao invés do livro anterior, decide deixar de ser cega quando, na última eleição, há uma maioria de votos em branco que instala o caos pelo país. Incapazes de aceitar este resultado, as forças políticas recorrem à violência, tratando este acontecimento como uma epidemia de voto em branco, cercando a cidade, interrogando e torturando cidadãos e fechando os serviços essenciais.  

É interessante olharmos para o início e final de Ensaio Sobre a Lucidez. A epígrafe, do Livro das Vozes, diz “Uivemos, disse o cão”, trazendo à memória o Cão das Lágrimas, e o apelo a agirmos contra um sistema que não nos serve e que apenas cria “cães” obedientes e produtivos. É com o retorno do Cão das Lágrimas e da Mulher do Médico a Ensaio Sobre a Lucidez que nos apercebemos do que este governo apresentado é capaz de fazer para manter a sociedade tal como era, todos os seus “cães” no lugar. 

O final, que acaba também com um uivo, um apelo, é de baixa esperança. Mas há-a lá, e é importante continuar a semear, dada a quantidade de cegos que ainda detestam ouvir os cães a uivar.  

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