Björk no Rockhal: uma utopia cinemática e deslumbrante
Voámos até à utopia; já que a utopia não parecia dar mostras de disponibilidade de voar até nós. A digressão europeia do mais recente espectáculo de Björk tinha, entre outras cidades, passagem pelo Luxemburgo – e, mais que curiosidade, sentíamos necessidade de assistir a esta produção. “Cornucopia” é a décima digressão musical da carreira da artista islandesa; mas é simultaneamente a sua primeira produção teatral. Vimos muitos concertos no decorrer dos últimos anos – mas nenhum tão visualmente impactante como este (ultrapassando, por exemplo, a mega-produção de Roger Waters na sua mais recente vinda à Altice Arena; ou o ainda mais transcendente espectáculo de lasers e ecrãs de Aphex Twin no Primavera Sound do Porto). Björk deu um concerto intenso e praticamente imaculado – cabe-nos tentar colocar por palavras os meandros da obra de arte que tivemos a oportunidade de assistir.
O Rockhal é uma das mais importantes salas luxemburguesas. Situada no extremo sudoeste do país, a cerca de cem metros da fronteira francesa, é uma sala de grandes proporções – um pavilhão de paredes interiores forradas a negro, com capacidade para seis mil e quinhentas pessoas de pé, num único patamar. Mas o que mais se destaca no Rockhal é a acústica do espaço – no espaço de um passo passamos de um átrio com eco e reverberação para um ambiente absolutamente distinto, em que sentimos a filtragem de frequências de uma forma impressionante para a quantidade de gente que ocupa a sala. Esta característica foi essencial, estamos em crer, para a qualidade do som do concerto, cristalino e equilibrado.
O espectáculo Cornucopia, de Björk, estreou na primavera em Nova Iorque – oito noites consecutivas de residência, que inauguraram uma nova sala da cidade americana. Trata-se de uma produção cinemática, colorida, inspiradora. Tendo por principal pretexto o mais recente álbum da artista – Utopia, lançado no outono de 2017 – o alinhamento do espectáculo visita ainda alguns dos temas mais antigos da sua discografia, embora quase sempre desconstruindo-os e apresentando versões mais experimentais dos mesmos. De resto, experimental é a palavra de ordem da rainha da art pop, numa carreira que parece insistir em tornar-se cada vez menos acessível, explorando os labirintos da estrutura composicional e do som. O concerto alterna momentos mais espaçosos e abstractos com músicas que pedem corpo e dança como reacção. É um manual de estilo guiado pela voz e presença da vocalista – e pelo surreal ensemble de flautistas que a acompanham. Mas lá iremos.
A premissa conceptual, ilustrada por um conjunto sugestivo de frases projectadas a meio do concerto, é a ideia de que as utopias podem ser operativas. A nossa imaginação do futuro – os lugares e os modos onde queremos chegar – deve ser concretizada agora, mesmo que seja desprezada pela tentadora perspectiva do realismo. Björk parte desta ideia e fá-la plasmar-se de formas muito distintas no seu espectáculo: os novos instrumentos musicais a que dá palco, como a flauta circular de quatro vocais distintos, ou a espécie de congas flutuantes num tanque de água; os efeitos 3D que potencia a partir do uso estratégico de várias camadas de projecção, servindo-se das transparências para criar uma impressão imersiva; o design vanguardista do vestuário e do cenário do palco, assim como as projecções futuristas que, não raro, parecem pintadas a esperança.
“Arisen my senses”, a título de exemplo, ainda no início do espectáculo, é marcada por rasgos de harpa que se emaranham nas percussões digitais e partidas que – seria injusto não o sublinhar com muita veemência – foram tocadas por completo ao vivo, por um único baterista. Ondas de cor erguem-se a cada tempo, compassadas, abrindo-se pela vasta largura do palco como um espectáculo de fogo de artifício. É um espectáculo audiovisual que não deixa os sentidos indiferentes. “Parece que estou no cinema”, comento com alguém. Um daqueles IMAXs. A definição é tanta na tela de fundo que não sabemos o que parece mais real: a imagem projectada ou as flautistas a dançarem na sua frente.
“Show me forgiveness” é a primeira de um conjunto de temas que Björk escolhe interpretar dentro de uma câmara acústica construída de propósito para este concerto. Trata-se de uma estrutura branca, abobada, que faz ecoar de forma muito natural a voz (e as flautas) – uma janela permite espreitar Björk, mas ficamos essencialmente sozinhos com a sua voz, como se tivéssemos entrado na sua casa e a ouvíssemos cantar no vão de uma escada, no andar de baixo. Nos temas que escolheu cantar a partir dali, a instrumentação é anulada ou reduzida ao mínimo. Outros casos em que os arranjos são igualmente despidos são “Venus as a Boy”, que surge praticamente irreconhecível numa dança pouco linear entre a voz da cantora e uma flauta; ou em “Hidden Place”, a capella, com o coro de dezoito vozes que abriu o concerto e o foi pontuando do início ao fim.
Mas os momentos mais intensos do concerto foram aqueles em que o ritmo escalava e pegava fogo às composições. A começar por “Isobel”, ainda na primeira metade, a tentar quebrar o formalismo numa plateia algo estática e contemplativa. Mas também na sequência mais forte do concerto (na nossa opinião): a trilogia de temas “Courtship”, “Pagan Poetry”, e “Losss”. A ambição rítmica e harmónica da primeira e da última a balizarem, no centro, um dos mais profundos e arrepiantes temas de toda a sua discografia. Nesse instante sentimos que o concerto já não nos devia nada.
Mas ainda houve tempo para mais um momento inesquecível, já no encore. Após a projecção de uma mensagem da jovem activista sueca Greta Thunberg, que concretizava de forma vincadamente política a mensagem artística a que Björk dera corpo neste projecto, segue-se a última performance da noite: “Notget”, do álbum Vulnicura, editado há quatro anos. A música abre-se numa espécie de ritual pagão, convite à dança sem regras – e o momento em que vemos mais gente balançar-se, já rendidos ao convite de Björk. É um cenário negro, algo contrastante com o brilho mais puro da maioria dos restantes temas, mas há nesta festa uma sensação de possibilidade. Se dançarmos, continuamos a criar, mesmo no meio da aflição. Sempre, sempre as flautas – o ensemble de flautistas acompanham o concerto do início ao fim, substituindo qualquer uso de cordas (à excepção da harpa), num espectáculo que soou cheio sem a presença de um violino ou de uma guitarra.
Ficamos muito felizes de ter testemunhado este acontecimento; ao público português a quem seja impossível viajar para a ouvir, resta a esperança de que a artista se digne visitar-nos em breve, apesar da sua prolongada ausência em palcos nacionais na última década. Uma parte de nós ficou a morar no Rockhal, no Luxemburgo – mas sabemos que esta utopia é possível onde a quisermos viver.
Fotografias do concerto são da autoria do fotógrafo oficial da digressão de Björk, Santiago Felipe, retiradas do Facebook da artista (concertos do Luxemburgo e de Bruxelas)