Abençoado Bento
Há uma certa impressão, uma certa escola, de que os jornalistas devem ser imperturbáveis, de expressão esfíngica, capazes de esconder qualquer emoção ou sentimento, porque o contrário disso é sinal dessa mácula suprema: a da parcialidade.
A mim sempre me custou esta história. A honestidade é, para mim, a qualidade mais valerosa num profissional, seja ele qual for. O jornalista, cujo trabalho é fazer relatos da realidade que observa, deve ser honesto nesses relatos que faz, mas não pode fazer de conta que não é nada com ele.
O jornalista tem, necessariamente, um ponto de vista sobre as coisas. Quando na rua nos cheira mal não vamos dizer que “alegadamente” havia um odor nauseabundo, só porque não queremos ser acusados de tomar o partido de quem reclama do mau cheiro.
Quando na vida nos cheira a racismo, nos parece racismo, nos soa a racismo, não podemos ter medo de o denunciar, expôr e repudiar. E foi isto que Bento Rodrigues fez esta segunda-feira (17) na abertura do Primeiro Jornal, da SIC.
A começar o informativo da estação de Paço de Arcos, o tema que nos relembrou o racismo presente na sociedade portuguesa: os insultos e discriminação constante, por parte dos adeptos do Vitória Sport Clube, que motivaram a saída do jogador Marega, do Futebol Clube do Porto, a meio do desafio contra a equipa de Guimarães.
Bento Rodrigues não hesitou: “Começamos este jornal com o rosto do carácter, da coragem e da lucidez. A coragem de ser o primeiro futebolista em Portugal e um dos poucos no mundo a abandonar um jogo depois de ouvir insultos racistas. O carácter de desafiar os que o tentaram travar sem perceberem que já não era sobre um jogo de futebol, nem sobre o resultado, mas sobre o que nos define enquanto civilização. A lucidez de saber que este é o momento que define um homem, que esta atitude vai muito para lá de um estádio; que tem impacto nas ruas, nos bairros, nas vidas dos que sofrem insultos racistas todos os dias.“
Assim sim. Bem o Bento Rodrigues, bem a @SICNoticias @SIConline. Assim sim, é este o papel e também a responsabilidade da comunicação social. Uma grande salva de palmas. pic.twitter.com/c8ZtCmMQU1
— Gonçalo Santos (@NunoElfuser) February 17, 2020
A escola do jornalista invisível, sem sentimentos, sem perceção ou opiniões, esquece-se que o jornalista deve ser, em primeiro lugar, alguém que pugna pela sobrevivência da democracia, da liberdade e da tolerância. Só estas três, em conjunto com mais algumas, permitem que exista imprensa livre.
O jornalista, que é em primeiro lugar um cidadão, tem de tomar partido. E, quando fica em silêncio perante a injustiça, quando se escuda nos “alegados” e nos “supostos”, quando usa demasiados verbos no condicional para não assumir a realidade que conta, também toma partido. O daqueles que querem escamotear os insultos, os ataques, as agressões.
Abençoado Bento. Por não abrir o jornal como se esta fosse mais uma notícia, como se este fosse só mais um dia. Este não foi o primeiro insulto racista, infelizmente não será o último, mas hoje é o dia em que temos de deixar de fazer de conta que não é nada connosco, em que não podemos continuar a varrer para debaixo do tapete.
Há um problema, é real: O ódio existe em Portugal e é usado como arma de arremesso para desmoralizar e desqualificar adversários, oponentes e rivais. No futebol e não só. Não fechemos os olhos e tenhamos a coragem, também nós, de dar um passo em frente contra isto.
Este artigo foi escrito por Pedro Miguel Coelho e foi originalmente publicado em Espalha Factos.