A peste de Camus e o coronavírus
Escrevo esta crónica amedrontado, não por mim, mas pelos meus avós, que são um dos meus tesouros. Só a ideia de um vírus os levar entristece-me. Não, não é assim tão impossível. Quando a epidemia começou, devido ao humor negro que costumo ter, decidi folhear novamente a Peste de Camus. Como otimista que sou, achei que ia ser uma espécie de Gripe A. Já não estou tão otimista. Ao folhear a obra, apercebi-me que na primeira vez que li o livro não gostei muito, possivelmente, porque se tratava de uma situação inconcebível na minha cabeça. Enquanto Lisboa entra numa espécie de quarentena, obviamente que não ao nível de Orão, vou entendendo melhor a história. Não pretendo repetir os mil e um apelos que foram feitos, primeiro porque não é o meu lugar, segundo todos os vimos. Sabemos o que temos a fazer. A crónica que escrevo tem outro objectivo, tem o objectivo de tentar captar as ideias de Camus, que, sem dúvida, são atuais com o coronavírus: a ideia do absurdo e a ideia de que só acontece aos outros.
Começando pela segunda (não querendo fazer muitos spoilers), o Dr.Rieux demorou algum tempo a convencer as autoridades de que a peste se tratava de um problema de saúde pública grave. Foi desvalorizado. Orão foi depois fechada. Em Portugal, felizmente, tudo começou a ser fechado num período precoce. O vírus não era uma novidade. Celebrou-se, no entanto, e de forma caricata, o primeiro infetado. Há que pensar, ao contrário do que assumidamente pensei de início, que isto não acontece só aos outros. Aqui entra o nosso dever cívico. Olhemos para o caso de Macau, um exemplo a seguir, onde a precaução e antecipação imperaram. Em Macau, não se pensou que isto só acontecia aos outros, e lá está, no meio de um dos grandes focos, não lhes aconteceu da mesma forma. Há que dar uma de Rieux por assim dizer.
A ideia do absurdo é um pouco mais complicada. A rapidez de como um dia para o outro uma coisa destas aparece e destrói ( não no sentido de dizimar a população mundial inteira, o caso não é tão excessivo, mas também não é negligenciável) é, ela mesma, absurda. Não parece ter sentido. Sim, houve uma mutação e uma transposição de espécies. A questão é porquê? Qual é o logos? Qual é a causa para haver um vírus destes? “Mas o que vem a ser a peste? É a vida, nada mais” escreveu Camus. Esperando que Portugal não fique como Itália, onde já há quarentenas obrigatórias, onde se perdem familiares, a ideia existencialista da vida como um projecto criado por nós próprios merece ser revisitada. São momentos de crise como este que, pessoalmente, me levam a ser confrontado com uma concepção existencialista da vida. Sei lá se não apanho corona amanhã ( claro que provavelmente não me aconteceria nada de grave, mas…), o absurdo da não existência, e por contrapartida da existência também, faz com que tudo de repente, ironicamente à semelhança do vírus, pareça simples. Os problemas simplificam-se, a responsabilidade pessoal volta à superfície. Tudo se torna óbvio. O sentido crio-o eu, ensinou-me o corona. A peste, a crise, a pandemia é a vida em si.
Neste período de quarentena, que vou ficar por casa, vou aproveitar para voltar a ler este clássico. Pode ser que no trágico, mas ao mesmo tempo cómico, corona, a leitura me faça ver as coisas de forma diferente. Esperando que esta crise acabe e outra, não infecciosa, comece.
Texto de Afonso Delgado Gonçalves
Afonso é estudante universitário de Medicina e Filosofia, de 23 anos, entusiasta de tudo o que implica pensar e detentor de uma curiosidade infindável. Um aspirante wannabe a médico-filósofo.