Foi da mulher (mãe, amante, filha) que Herberto Helder se fez poeta
O cenário literário português alterou-se por completo com o surgimento de Fernando Pessoa e toda a sua heteronímia. Uma genialidade como esta, para além de se distinguir de tudo o que fora criado até então, cravou na literatura portuguesa uma sombra para os autores coetâneos ou posteriores. Luís Miguel Nava, no seu ensaio 1888-1988: Um século de poesia, afirma que “Dizer que Pessoa moldou a nossa poesia destes últimos cem anos significa, antes de mais, que moldou o olhar que sobre ela nós poisamos”.
Contudo, no final da década de 50, começam a surgir ecos de um nome que se distancia de todas as criações literárias anteriores, tal como a geração de Orpheu outrora o fez: Herberto Helder. Não é correto afirmarmos que Herberto Helder se diferenciou de forma absoluta da poética pessoana, porque, na verdade, ainda se verificam algumas marcas, como a exaltação da infância. No entanto, Herberto conseguiu indubitavelmente desembaraçar-se da sombra que Fernando Pessoa fundou.
A mestria herbertiana revela-se no modo como o poeta escreve o mundo sensorial e erótico, pois estas são as dimensões fulcrais na poesia de Herberto Helder. É, através da mulher —, mãe, amante, filha —, que o poeta apreende todas as coisas. Na poesia herbertiana, a própria criação poética relaciona-se com a carne, com o sexo. Além destes temas tão característicos de Herberto, a metáfora apresenta-se como crucial para nomear e classificar o mundo do poeta, imperando assim a palavra conotativa. Relativamente à importância da metáfora, Américo António Lindeza Diogo aponta que “Na verdade dir-se-ia começar por privilegiar o modelo do aparente e do oculto. E esse modelo obrigaria o leitor, intimado a ser ciente de que o oculto detém a chave da necessidade existencial do aparente”[1].
Outro traço fundamental na poesia de Herberto Helder é a íntima relação entre o conteúdo e a forma. Deste modo, torna-se improvável que ao leitor escapem os versos longos e livres, que se mesclam com a palavra intensa e incontida de Herberto. Assim, neste artigo, propomos-nos a analisar o âmago da poesia herbertiana — a mulher — focando-nos no poema O Amor em Visita e, enquadrando-o ainda na primeira obra do autor: A Colher na Boca.
Os primórdios
O primeiro momento da obra de Herberto Helder é fortemente marcado pela mitologia, poesia, natureza, casa, cidade, violência, reprodução e, de forma evidente, pelo topos da mulher, que é conjugado com todos os temas anteriormente referidos. Nas décadas de 50 e 60, período em que os poetas manifestavam nas suas criações uma preocupação com o panorama político português, Herberto Helder distingue-se e afasta-se dos compromissos ideológicos e sociais, criando uma poesia quase autista.
A obra A Colher na Boca, publicada em 1961, aborda dois temas essenciais e transversais a toda a obra herbertiana: a relação entre o poeta e a sua criação artística e a representação da figura feminina enquanto elo de ligação a todos os elementos do mundo. No texto Poema, o sujeito poético caracteriza a obra poética como uma unidade carnal, um ser autónomo, atribuindo uma extrema importância à palavra, descrevendo-a como o elemento necessário para a unidade. No final deste texto, brota uma relação íntima entre o poeta, o poema, a natureza e a casa:
“Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,
deitado de costas, com o nariz que aspira,
a boca que emudece,
o sexo negro no seu quieto pensamento.
batem, sobem, abrem, fecham,
gritam à volta da minha carne que é a complicada carne
do poema.”
Como já foi referido, a mulher é o núcleo da poesia herbertiana e apresenta-se como a criadora, a geradora e impulsionadora de vida. Assim, a mulher é o princípio e o fim de todas as coisas. A importância atribuída ao universo feminino estará provavelmente relacionada com a morte prematura da mãe do poeta. A figura maternal apresenta-se, assim, como a maior inspiração para o sujeito poético, sendo que o poema Fonte é o expoente de toda a veneração à figura maternal. Assim, torna-se premente assinalar a importância extrema da metáfora “fonte” na poesia de Herberto Helder: a água é o recurso que concede vida a todo o mundo, além disso, como referiu Juliet Perkins, na sua obra The Feminine in the Poetry of Herberto Helder, “water protects the unborn child”[2]. Portanto, assim como a água concede vida a todos os seres, a mãe também gesta e nutre o seu filho e, além disso, assume-se como fonte de inspiração, alimentando a vida poética.
Apesar de a mãe se assumir como a musa central e vital, o sujeito poético vê-se compelido a recorrer a outras fontes de inspiração assim que a figura maternal o abandona inesperada e tragicamente. O poema As Musas Cegas alude, portanto, a todas estas fontes de inspiração que estimulam a criação poética. Para o sujeito poético, o fogo, a primavera, o mês das musas ou do erotismo e a cidade são a sua inspiração. Contudo, estes termos são meras metáforas para a mulher, agora, amante do sujeito poético. A figura feminina é o elo que liga o poeta ao mundo concreto, ao mundo do real e, também, ao reino das palavras:
“Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha
sobre os arcos e os tanques e as frestas.
Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento,
eu era profundo e fecundo. O sangue
passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos
ardiam em mim, nessa monstruosa
noite da criação.”
Contudo, esta relação íntima entre a mulher e a criação poética não se manifesta entre o homem e a sua amante. Entre ambos não se verifica uma união mental, espiritual, enfim, amorosa. A figura feminina, na poesia de Herberto Helder, apresenta-se fragmentada, não podendo associar-se a um ser, a um indivíduo. Podemos interpretar a mulher como uma figura intemporal, até abstrata, que é apenas concretizada pela sua fisionomia. No entanto, para o leitor, devido à excessiva fragmentação, torna-se abstruso compreender estas mulheres enquanto seres, enquanto um todo. Estas figuras quase despersonalizadas eclodem poeticamente através de metáforas que, como já foi referido, são cruciais na obra do poeta.
A mulher como a deusa-mãe
A essência feminina que, na verdade, cativa o poeta é a sua capacidade de reproduzir, criar e nutrir e, na poética herbertiana, estão presentes inúmeras metáforas para o domínio da fertilidade e gestação como, por exemplo, a “lua”, “maçã”, “fonte”, “colher”, “vindimas” e “leite”. Para o sujeito poético, a mulher incorpora em si o segredo de todas as coisas e, por esse motivo, devota-se a este ser divinal. Consequentemente, esta conceção reporta-nos à figura da deusa-mãe que se associa à criação e fertilidade. Em The Feminine in the Poetry of Herberto Helder, Juliet Perkins estuda também esta representação da mulher herbertiana, afirmando: “the feminine appears here as the Great Mother who bears, nourishes and receives back into herself, and whose imagery is mythic-folk: water, the fount, fertility, Spring, plants and beasts”[3].
Esta noção de deusa-mãe leva-nos, portanto, à análise do poema O Amor em Visita. Antes de mais, é necessário referir que muitas análises têm sido feitas sobre o poema — publicado, inicialmente, em 1958 — contudo, determinados estudos tendem a interpretar este texto sob uma perspetiva romântica. Apesar de ser uma via tentadora, torna-se premente reiterar, de forma a não corromper todo o mundo herbertiano, que não consideramos este um poema de amor, mas sim uma exaltação à mulher enquanto ser gerador e criador.
“O Amor em Visita”
No poema O Amor em Visita, um texto com uma componente imagética fortíssima, são realçados determinados elementos a priori: fecundação, natureza, corpo, vida e fruto. Contudo, o leitor não se prende unicamente pelas palavras, mas também pela forma como elas se apresentam a nós. Como foi mencionado anteriormente, este é um poema que evidencia uma forte relação entre a forma e o conteúdo: os versos livres e longos são intercalados por versos curtos, dotados duma intensidade brutal. Assim, esta liberdade de criação está cravada na humanidade e na poesia.
A primeira estrofe apresenta uma “mulher quase incriada”, atribuindo-lhe um estatuto sobrenatural e superior ao sexo masculino. Mas esta é uma mulher fragmentada, que apenas se materializa através de “seus ombros”, “dois seios” e “boca”. De forma clara, assistimos a uma comparação constante entre o corpo feminino e o mundo natural. A mulher é “uma folha viva de erva”, possuidora de um “arbusto de sangue”. Na realidade, estas não são meras metáforas para representar o corpo feminil; são, sobretudo, uma forma de demonstrar a simbiose entre a mulher e a natureza.
Na estrofe seguinte, realçam-se os encavalgamentos que atribuem um ritmo eloquente ao poema e se associam, de forma evidente, ao cântico a que o sujeito poético alude no primeiro verso: “Cantar? Longamente cantar.” Esta é uma estrofe que exalta o desejo e a veneração pela simbiose de corpos, sendo que esta união entre homem e mulher se encontra camuflada por metáforas do ritmo e universo natural:
“Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.”
Georges Bataille, na sua obra O Erotismo, define este mesmo conceito como “a aprovação da vida até na própria morte”[4] e, ao estudar o erotismo sagrado, o escritor francês reporta-se ao conceito de sacrifício, afirmando que “o elemento feminino do erotismo surgia como vítima, e o masculino como sacrificador e que, um e outro, no decurso da consumação, se perdiam na continuidade estabelecida por um primeiro acto de destruição”[5]. O Amor em Visita, que alude, em vários momentos, a estes rituais e a estas celebrações, caracteriza a união dos corpos como uma cerimónia de onde resultará a reprodução — maior dádiva do mundo. A terceira estrofe do poema pode portanto ser relacionada com as conclusões de Georges Bataille. Apesar de a morte ser uma presença real no organismo da mulher e do mundo, a sua capacidade geradora e criadora acabam por imperar, alimentando este ciclo que é a vida. Esta figura que emana energia é comparada a uma “cabra”, animal que é geralmente sacrificado nos rituais. Além do animal escolhido pelo sujeito poético, os tons encarnado e branco aludem também a um ambiente sacrificial, em que a vida e a morte se abraçam:
“Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.”
Na quarta estrofe, o sujeito poético volta a concretizar a figura feminil através de fragmentos do seu corpo: “sorriso”, “suas mamas”, “a curva quente dos cabelos” e “boca”. Além disso, no verso “Com uma flecha em meu flanco, cantarei”, o sujeito poético, que anseia por uma mulher jovem e fértil, assevera que não procura romantismo e paixão, mas busca uma relação erótica que concretize a chave do mundo: a reprodução. Assim como no poema Fonte, no final desta estrofe, a mulher é caracterizada como este ser inspirador e criador de linguagem, pois o sujeito poético irá embeber o seu cântico à figura feminina.
Na quinta estrofe, o eu poético persiste com associações entre a mulher e a natureza e, com o verso “dentro da sua face estará a pedra da noite”, assegura que a mulher é, indubitavelmente, a chave, o segredo de todas as coisas. Na estrofe seguinte, nos meandros de inúmeras metáforas, o leitor compreende que não existem corpos ou seres individualizados: isto é, o indivíduo apenas se concretiza quando se une a um outro e cria. Assim, a figura feminina penetra todas as dimensões do homem e, além disso, a mulher tem o dom de dar e retirar vida, construir e desconstruir o tempo:
“Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra – invento para ti a música, a loucura
e o mar.”
Na sétima estrofe, a figura feminina é relacionada com termos como “mesa” e “harpa”, sendo que a primeira metáfora surge noutros textos de Herberto Helder e apresenta uma importância crucial. Numa casa, a mesa é o objeto que suporta o alimento. Na poesia herbertiana, a mulher a ela se equipara, pois esta também nutre e proporciona vida. Mais uma vez, nesta estrofe, o leitor compreende que os dois corpos só alcançam uma completude plena quando unidos: “Tu própria me duras em minha velada/ beleza”.
Na estrofe seguinte, são reintroduzidos diversos elementos que aludem à fertilidade da mulher: “vindima”, “o mar”, “a água” e, novamente, “a mesa”. Assim, a figura feminina é o ser que possui a capacidade de dar, de conceder, ao invés do homem que é o recetor nesta simbiose: “tu dás-me a tua mesa”. Os dois últimos versos desta estrofe — “E em ti/ principiam o mar e o mundo” — constituem um epítome magnífico da obra herbertiana. Como foi referido anteriormente, para o sujeito poético, a mulher é o princípio e fim de todas as coisas. O leitmotiv deste poema adentra a nona estrofe e o sujeito poético continua a exaltar a fertilidade e o poder que a figura feminina acarreta em si. Nesta estrofe, torna-se claro que o conceito de tempo do homem esmorece para se agregar à eternidade do ser feminil:
“Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. (…)”
Através destes versos ainda compreendemos que a mulher é claramente um ser superior pela sua capacidade de fecundação e nutrição, mas também por reunir em si todas as coisas: a natureza e o homem. Apenas, deste modo, se concretiza o Mundo.
Na décima estrofe, a intemporalidade e subjetividade da figura feminina volta a imperar através do verso “a carne cresce em seu espírito cego e abstracto”. Contudo, todos os seres e elementos veneram e são afetados por este ser fértil e superior que é a mulher: “os astros”, “as casas”, “a cidade”, “os bichos”, “a madeira”. Na estrofe seguinte, o sujeito poético volta a aludir à simbiose destes corpos e à ideia de que a vida se impõe sobre a morte.
A décima terceira estrofe está fortemente carregada de elementos metafóricos. O tempo ou a vida, para o sujeito poético, principiam com a união da “boca” e da “lua”, metáfora para os sexos do homem e da mulher respetivamente. Esta união íntima surge, de novo, nos versos “onde a beleza que transportas como um peso árduo/ se quebra em glória junto ao meu flanco” e “darei minha voz confundida com a tua”. Através da “taça” de onde o sujeito poético beberá, esta simbiose é mais uma vez associada a uma espécie de ritual de onde resultará a esperada fecundação.
Nas três estrofes seguintes continuam a surgir ecos de união e de contínua partilha e reciprocidade. Devemos atentar, ainda, nas metáforas de que o poeta se serve para opor o mundo masculino — térreo e concreto — ao mundo feminino, caracterizado pela sua abstração e componente etérea: “barro”/ “estrela”, “trevo”/ “ave”. A fertilidade da figura feminina, traduzida em “cerrada matriz de sumo”, vem modificar todas as dimensões do mundo, todos os seres, todas as coisas.
O leitor compreende o homem, na décima sexta estrofe, como intermediário para uma dádiva maior: a geração. A simbiose destes dois corpos não resulta de um ato de amor ou paixão e o homem, enquanto indivíduo, não apreende da união algo mais do que a reprodução. Não obstante, para o sujeito poético, este é o momento mais glorioso: a mulher premeia o mundo com o seu fruto. Devemos atentar que, mais uma vez, o eu poético recorre a termos metafóricos que se associam à natureza para evidenciar a fertilidade: “(…) e serás uma árvore/ dormindo e acordando onde existe o meu sangue”. Aquando da relação sexual, o homem deve, portanto, suprimir-se de forma a permitir que os poderes da mulher aflorem e que ecloda este ato tão extraordinário que é a fecundação. Todavia, o homem não é caracterizado como um ser passivo ou secundário, mas como o elemento carnal e consciente deste momento quase divino:
“- Eu devo rasgar a minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.”
Estes dois seres permitem a geração e criação, mas também a renovação do ciclo. Estes são seres que exalam energia e todos os elementos do mundo “aspiram longamente a nossa vida”. No entanto, para o sujeito poético, há uma supressão destes dois indivíduos para que brotem dois geradores. Mas, assim, se completa o curso: “Por isso é que estamos morrendo na boca/ um do outro”.
As últimas quatro estrofes são o apogeu deste poema, onde imperam a metáfora e a repetição de versos, alicerçando toda a essência do primeiro momento da poesia herbertiana: a representação da mulher enquanto deusa-mãe, contrariando, assim, a narrativa bíblica de Adão e Eva. Nestas quatro estrofes, onde é descrita a união carnal destes dois corpos, a mulher é novamente fragmentada e caracterizada pelo “ventre”, “cabelos”, “mãos”, “boca” e “sorriso”. O seu corpo apresenta-se ao leitor como uma escadaria, que o sujeito poético percorre até atingir a chave do universo. A mulher —associada à noite e consequentemente ao misticismo — é o ser que embebeda o mundo de magia e, assim, impulsiona o renascimento não apenas do mundo, mas também do seu parceiro: “Do meu recente coração a vida sobe,/ o povo renasce,/ o tempo ganha a alma”. A figura feminina enquanto ser gerador, nestas estrofes, é metaforizada pelo “pássaro de resina”, “uma lua vermelha”, “flor do vinho”, “corola de linho” e, novamente, pelo “arbusto”, termo presente na primeira estrofe, evocando uma espécie de ciclo. Este homem mergulha numa mescla de êxtase, vida e morte — remetendo-nos para a definição de erotismo de Georges Bataille — quando se envolve com este ser magnânimo. Esta ideia é enfatizada através da repetição, no final de cada estrofe, do verso “Em cada espasmo eu morrerei contigo”. Este é o poema sobre o fenómeno extraordinário que é a fecundação, cantando a mulher que não cessa de fascinar o sujeito poético com uma capacidade geradora, que se equipara ao papel da água no curso do mundo natural: “Tua voz canta/ o horto e a água”. Estas são palavras que poetizam a figura feminina e a representam como o âmago de todas as coisas e, assim, “beijarei em ti a vida enorme”.
Considerações finais
A geração de Orpheu veio indubitavelmente colocar uma sombra na literatura portuguesa contemporânea, mas Herberto Helder, com um universo de palavras e conceitos tão singulares, conseguiu sobressair-se e, acima de tudo, entranhar-se em quem lê. As temáticas da poesia herbertiana não fascinam pela novidade, mas pela mestria com que são trabalhadas. Herberto Helder escreve sobre a criação poética e sobre uma mulher, quase divina, que liga o poeta a todas as dimensões do mundo. A figura feminina é a ponte, a chave, o segredo.
A musa primária do poeta é a mãe e, por isso, ele exalta a sua capacidade de gerar, cuidar e nutrir. O ser maternal é, portanto, responsável por ser fonte de vida humana e vida poética também. Apesar da figura maternal se assumir como inspiração máxima, o sujeito poético recorre a outros elementos metafóricos que representam a mulher enquanto amante. O que o leitor consegue depreender é que este novo sujeito é um fragmento ou uma sombra da mãe morta.
Assim, surge o poema O Amor em Visita, que é o apogeu da exaltação a esta figura feminina que nos remete para a deusa-mãe: um ser abstrato, quase sobrenatural, a que o sujeito poético se une para completar a dádiva do mundo — a fecundação. Esta mulher tem o dom de conceder e retirar, de erguer e fazer esmorecer todas as coisas. O próprio tempo do poeta sucumbe à eternidade da figura feminina. Este poema é ainda um belíssimo arquétipo da poesia herbertiana no que concerne à esfera metafórica: a mulher é constantemente associada à natureza, enfatizando o ciclo regenerador de ambas.
Muitos críticos da obra de Herberto Helder estudaram este texto como um poema de amor. Contudo, devemos proteger a representação feminina herbertiana, que é tão autêntica e sui generis. Herberto Helder é um mundo quase inatingível, um universo hermético, que fascina o leitor e o obceca com interpretações e possíveis acessos.
Fontes:
Helder, Herberto (2014), Poemas Completos, Porto, Porto Editora
[1] Diogo, Américo António Lindeza (1990), Herberto Helder: Texto, Metáfora, Metáfora do Texto, Coimbra, Livraria Almedina: 7
[2] Perkins, Juliet (1991), The Feminine in the Poetry of Herberto Helder, Tamesis Books Limited, London: 19
[3] Perkins, Juliet (1991), The Feminine in the Poetry of Herberto Helder, Tamesis Books Limited, London: 5
[4] Bataille, Georges (1988), O Erotismo, Lisboa, Edições Antígona: 11
[5] Ibidem: 16