O hip-hop senciente de Nujabes
Seba Jun é, de forma simples e humilde, uma grande figura da música mundial. O artista mais conhecido como Nujabes teve um impacto especial na área das batidas boom bap aliadas a melodias descontraídas, e num género dentro de um género que tem estado em destaque desde a década passada, o lo-fi hip hop. Dentro desse grupo, raro será o artista que não tenha sido influenciado pelo artista japonês.
Jun começou como dono de duas pequenas lojas de discos em Shibuya durante a década de 90. Era um apaixonado pelo jazz, soul e hip-hop – algo que transparecia nos álbuns que vendia nas suas lojas – e desde cedo que sentia a música a chamar por ele. Como produtor, Nujabes era dotado de uma incrível versatilidade e criatividade, utilizando um leque de sonoridades, samples e artistas de todo o mundo, conseguindo infundir em cada canção um sentimento específico. Dos seus temas emanam paisagens e sensações, sons que transmitem ao ouvinte nostalgia de tempos que nunca viveu, que o tornam emocional sobre momentos que nunca presenciou.
O protagonismo nas suas faixas é variado: em “Luv (sic) pt 2”, o ênfase é colocado nos drum loops que formam uma batida serena, com um piano e um saxofone a ecoarem por trás da voz de Shingo02. Noutros casos, o destaque vai para um piano, ora emocional, ora elétrico como podemos ouvir em “Horizon”, “Yes” ou “Spiritual State”. Noutras peças, nota-se claramente o amor de Nujabes pelo jazz, como em “Music Is mine” ou “Horn in the middle”.
Em 2003 lança o primeiro álbum, Metaphorical Music, um dos pináculos da música low fidelity. É um projecto onde o entrelaçamento entre hip-hop e jazz surge pela primeira vez em todo o seu esplendor, demonstrado através de rimas irreverentes aliadas a batidas melancólicas. Nos dias que correm continua a ser um álbum intemporal, sem acusar o peso da idade.
É também em Metaphorical Music que podemos ouvir “Beat laments the world”, música que viria a ser a base de “Shiki No Uta”, tema final da anime Samurai Champloo. Em 2004, Nujabes é convidado para participar na banda sonora da série, única no meio artístico e marcada pelo hip-hop irreverente e incomum como paisagem sónica para uma animação também muito ligada à cultura urbana. Esta viria a revelar-se uma parceria muito benéfica, tendo tanto o anime como a sua música conseguido sucesso internacional. Foi para muitos o primeiro contacto com a música de Nujabes, e a banda sonora viria a ser um marco e dinamizador do lo-fi hip-hop como nunca antes visto, com algumas pérolas escondidas como “Aruarian dance”.
Em 2005 lança Modal Soul, a sua magnum opus, com uma abordagem focada num jazz-hop mais brando e sereno que nos incentiva a fechar os olhos e interiorizar toda a serenidade e ritmo que nos oferece. É um álbum que merece ser ouvido várias vezes de uma ponta à outra, como os incontáveis cafés com aquele amigo especial que sempre nos oferece o ombro. Talvez o lo-fi hip-hop conseguisse existir sem Modal Soul, mas certamente não seria o mesmo que temos hoje, especialmente no que toca ao uso de instrumentos de sopro e instrumentos de cordas para humanizar um género conhecido pela sua produção “industrial”.
Ao longo dos anos, a gradual popularidade da sua música, a sua fama crescente e o grande número de concertos forçaram Jun para fora de Tóquio, assoberbado por toda a atenção. Passou a viver no litoral, afastado dos holofotes, e fez uma pausa na música, tendo oficialmente apenas ajudado e produzido um número reduzido de faixas para as compilações da sua editora, Hydeout Productions. O seu afastamento continuaria até 2009, altura em que estaria a preparar um possível novo álbum. A comunidade estava extasiada, e a antecipação crescia ao longo dos meses para ver o impacto do retiro de quatro anos na sua música.
Em 26 de Fevereiro de 2010, Seba Jun deixou toda a sua audiência mundial em lágrimas: esteve envolvido num acidente de carro que se revelaria fatal, com apenas 36 anos. Foi um murro no estômago para todos os que já o conheciam e para todos os que poderiam vir a conhecê-lo e e tristemente descobrir que o seu criador já não estava entre nós, saberem que seria impossível ver Nujabes ao vivo, poder conhecer o homem por trás dos beats.
Com Spiritual State em 2011, um álbum post mortem com músicas não publicadas que foram completadas pelos seus amigos mais próximos, ouvimos aquilo que podem ser os resquícios da sua música, a sua última obra para o mundo, uma mensagem inconfundível de esperança, de paz, uma última homenagem sonora ao seu amor pelo hip-hop e pelo jazz.
Nujabes viria a ser um dos poucos produtores japoneses na altura a ultrapassar as fronteiras nipónicas e elevar a sua música ao patamar mundial, tornando-se num dos “padrinhos” do lo-fi hip-hop. No entanto, esta popularidade surgiu perto do final da sua carreira, graças ao aparecimento das plataformas digitais que facilitaram mais do que nunca a partilha de música por todo o mundo.
Tristemente, ao longo da sua carreira foram escassas as entrevistas, existindo apenas uma sobreviva, mas muito difícil de encontrar traduzida. Seba focava-se na música, era isso que queria fazer, aquilo que mais amava. Era um introvertido de gema, que queria pensar apenas e só em música. Actualmente, são inúmeros os artistas que influenciou, tal como Tomppabeats, Jinsang, Idealism, Elijah Who e Caleb Belkin, alguns dos mais conhecidos e onde mais claramente podemos ver o seu legado.
As batidas de Seba Jun transcendem as notas musicais, os instrumentos e as vozes que os acompanham. São batidas de feel good automático como “Lady Brown”; são hinos melancólicos que nos deixam com aquele quentinho no coração num dia frígido e chuvoso onde não conseguimos fazer mais nada senão receber a tristeza que a Terra emana, como tão bem soa em “Imaginary folklore“; são sonoridades que nos deixam em paz connosco mesmos, como se os acordes da guitarra em “Aruarian dance” conversassem connosco e nos abraçassem quando nos sentimos mais sozinhos.
Nujabes faz aquilo que qualquer artista ambiciona: deixar um pouco da sua música na nossa alma, mas infelizmente não poderemos contar mais com ele. Tudo o que nos resta é a sua obra, as emoções que tentou transparecer para quem a ouve. Não é algo fácil de explicar e cabe só a nós interpretar, sentir, apreciar cada faixa, cada acorde, cada nota, e criar o seu sentido. É aí também que reside o charme das suas batidas, das suas teclas. É a abstração do género, ignorar que seria apenas música e criar algo muito maior, algo que entra nos ouvidos e chega ao coração e de lá nunca mais sai.
Talvez seja um subjetivismo que fala mais alto, mas Nujabes e a sua música ultrapassam a sua forma para algo mais abstrato, para aquilo que toda a música pretende atingir, as emoções de cada um de nós, as nossas ambições, aquilo em que acreditamos. E é isso que garante que Nujabes e a sua obra não perecerão e resistirão ao teste do tempo e terão impacto na vida de gerações vindouras. E não é essa imortalidade pós-vida o maior charme da música?
Descansa em paz, Seba. 10 anos sem ti é muito tempo, a humanidade tem saudades.
Crónica de Tiago Ribeiro
Licenciado em Psicologia e Direito