Terapia de Divã. Nuno C. Sousa: “a criatividade resulta sempre da parte saudável da personalidade”
(‘Terapia de Divã’ é a rubrica da Comunidade Cultura e Arte dedicada à psicologia. Semanalmente, temos todos um encontro marcado neste divã para, com o auxílio dos especialistas, discutirmos e entendermos melhor os mais variados assuntos — desde a sociedade até à criatividade — à luz do enquadramento psicológico. O tema em análise na entrevista que se segue é “a criatividade à luz da psicologia”. Para a semana, o tema em análise será “a psicologia na 3ª idade. Se o tema te interessa, não percas)
À luz do texto do ‘Terapia de Divã’ da semana passada, a criatividade será, então, uma forma de comunicação? Será algo que impele ao nosso alheamento ou, pelo contrário, constrói pontes com a nossa realidade? E será que pessoas artísticas serão sempre pessoas com problemas psicológicos? Foi o que tentámos perceber em conjunto com o psicólogo e psicanalista Nuno C. Sousa.
Queria começar, primeiro, por uma definição de criatividade. Tendemos a confundir as duas coisas, mas criatividade não é, necessariamente, só arte. É mais vasta e mais ampla do que isso, embora a arte, claro, tenha a sua base na criatividade.
A arte é um produto da criatividade que é um processo. A criatividade é um processo que pode produzir arte.
A criatividade é uma forma de comunicação humana?
Sim. A perspectiva que vou dar é a minha interpretação da psicologia que resulta com base no conhecimento psicanalítico. A psicologia envolve várias áreas. Cada uma trabalha numa perspectiva diferente sobre as mesmas questões do ser humano. Eu diria que a criatividade é um processo individual de reinterpretação e reconstrução da realidade. Ou seja, a criatividade é um processo através do qual alguém, com base naquilo que é a sua personalidade, interpreta elementos da realidade e lhe aufere elementos da sua própria personalidade. A criatividade é um processo que se pode revelar ainda no trabalho operacional, no trabalho técnico, ou seja, quando se está a fazer uma operação que requeira conhecimento técnico, necessário para encontrar uma solução para um problema – a solução para esse problema é um produto da criatividade. Neste caso, a integração da personalidade não tem tanto a ver com a subjectividade emocional da pessoa; tem a ver com a experiência pessoal que, com base na sua experiência, vai produzir soluções para um problema. Isso é um processo criativo, por exemplo, mas não é, necessariamente, um processo subjectivo.
O processo artístico também pode ter inerente um processo de uma criatividade operacional, mas isso é um meio para o produto artístico. Por exemplo, uma experiência pessoal que eu tive, quando visitei o ‘Museu Picasso’, em Barcelona – fiquei muito impressionado com a capacidade de Picasso de desenvolver muitas técnicas no processo de pintar. Neste caso, portanto, estão em causa essas duas dimensões da criatividade – a criatividade operacional e a criatividade artística. A criatividade operacional, que diz respeito às técnicas, às ferramentas, à forma como se trabalham as tintas, tem o propósito de produzir um produto artístico, os quadros. A criatividade artística tem uma componente que deriva muito mais da forma como a pessoa pensa e sente sobre a sua própria experiência..
Fazendo uma ponte com o que disse, há a ideia de que a criatividade, por ser uma alternativa à realidade, pode-nos fechar mais em nós mesmos. Mas a criatividade, em todos os seus âmbitos, não acaba por funcionar como uma forma de entendimento entre o que nós somos e o mundo que nos rodeia?
Diria que o processo criativo no seu estado puro, saudável, é um processo que nos abre para a realidade e faz com que consigamos acrescentar qualquer coisa à realidade. Muitas vezes, o que acontece é que o processo criativo está contaminado por elementos patológicos da personalidade. O que acontece é uma tentativa de processo criativo que fica incompleto pelos condicionamentos da personalidade. Há artistas cuja temática da obra é toda ela muito redundante. Não quer dizer que sensorialmente o produto artístico seja sempre muito parecido, mas as temáticas, os sentimentos que tentam transmitir nas obras são muito similares. Então o que temos é a tentativa incompleta do artista integrar e superar sentimentos que decorrem de experiências marcantes da sua história de vida. Aí, uma tentativa de processo criativo pode provocar isolamento, mas já não estaremos a falar do processo criativo estruturado.
Que importância tem a criatividade para o desenvolvimento humano, principalmente na primeira infância?
Ora bem, eu diria que a criatividade nas crianças é ligeiramente diferente da forma como se manifesta nos adultos. Ou seja, as crianças utilizam muito materiais associados às artes plásticas como forma de integrar novas experiências da realidade. O trabalho de imaginação é, portanto, uma espécie de imaginação que é traduzida em pinturas, construções. Este processo de imaginação é um processo criativo que reflecte, de alguma forma, as representações que eles fazem, mas não são fotografias da realidade, têm o filtro deles próprios. Esse processo criativo, no entanto, está muito ligado à integração da experiência que eles têm da realidade e é uma antecipação do que serão as experiências futuras. Ou seja, o processo criativo é uma antecipação das experiências futuras com base nas experiências que eles vão tendo. É a integração da experiência e uma incitação daquilo que são as experiências futuras. No caso dos adultos, haverá mais a recriação ou a complementação daquilo que é a realidade, porque os adultos já têm uma experiência integrada da realidade, já têm uma personalidade amadurecida, então sabem como as coisas funcionam. Já usam o processo imaginativo, o processo de expressar a experiência de uma forma mais crescida.
Agora que focou a diferença na forma como crianças e adultos encaram a criatividade, lembrei-me de um programa sobre psicologia no qual fizeram uma experiência interessante. Mostraram a crianças e adultos meias formas, como por exemplo, um meio círculo, parte de um quadrado, e daí em diante. A ideia era serem formas simples que dessem para serem complementadas ou completadas. Então, perguntaram a crianças e adultos o que essas formas poderiam ser. As crianças, para cada uma das formas, conseguiram dar imensas hipóteses, enquanto que os adultos só conseguiam dar duas ou três, no máximo.
A falta de experiência das crianças permite, de forma natural, um processo de pensamento mais imaginativo. O adulto, portanto, pela experiência acaba por ficar mais ligado ao concreto. A criança, como não tem tanto esta experiência da aprendizagem e como não está tão formatada, limitada ou educada a ajustar a interação àquilo que é a média da sociedade, o seu pensamento acaba por ser, de forma natural, imaginativo. Quando pedem à criança para complementar a imagem, já vai neste processo de imaginação. É esta ausência do condicionamento, a falta de conhecimento da realidade e aquilo que as crianças percebem que acaba por ser muito mais descolado do concreto. Ou seja, o facto da criança complementar imagens de uma forma tão diferente não é só fruto da imaginação no sentido artístico ou no sentido criativo; tem a ver com aquilo que elas fantasiam com base no pouco que conhecem. Para um adulto, o que pode parecer um produto extremamente artístico, é muito diferente do que o adulto faz na sua perspectiva ligada ao concreto da realidade, certo? O que a criança está a fazer é uma integração da realidade. A criança está a tentar perceber aquilo com que está a interagir e complementa com aquilo que ela percebe. Como é criança, no entanto, nem sempre percebe o que está em causa e, então, vai imaginar uma coisa muito artística ou muito bonita.
Na entrevista anterior que deu à CCA, referiu que a inteligência cognitiva é, essencialmente, a nossa capacidade de vermos as relações entre as coisas. Nesse sentido, a criatividade pode ser importante para o desenvolvimento cognitivo?
Vamos lá ver, sim e não [risos]. Uma coisa é a associação de conhecimento, de coisas concretas, e podemos ter alguém que é muito eficaz na execução de conhecimento que já existe, mas isso não é, necessariamente, um processo criativo. Por outro lado, temos alguém que não está a tentar operar sobre problemas, já tem soluções definitivas. Essa pessoa fará uso da inteligência cognitiva e irá aliá-la ao processo criativo. Aí, vamos chegar a soluções novas para problemas novos. Ou seja, a inteligência cognitiva não leva necessariamente ao processo criativo, mas o processo criativo é mais eficaz quanto maior for a inteligência cognitiva.
A criatividade pode ser desenvolvida? De que forma?
A criatividade é, sem dúvida, desenvolvida. A criatividade, a eficácia da criatividade e o processo criativo, para ser desenvolvido, exige um esforço activo. Isto quer dizer que, para haver um processo em que há uma recriação ou um complemento daquilo que é a realidade, tem de haver uma aquisição grande de conhecimento. São esses elementos do conhecimento que vão ser combinados e trabalhados. Depois, quanto mais madura for a nossa personalidade, mais rico será o produto do nosso trabalho sobre a realidade. Por uma lado, existe um trabalho no sentido de aprender sobre a realidade. Em segundo, exige também um trabalho grande para o amadurecimento da nossa personalidade. Ou seja, se pensarmos sobre essa experiência – o estarmos expostos a novas situações, a novas realidades – é um processo muito exigente emocionalmente, porque exige o confronto com novas maneiras de pensar, a adaptação a diferentes formas de estar, o lidar com pessoas diferentes. Tudo isso pode ser um processo muito doloroso, no sentido em que há um confronto constante e uma desconstrução constante daquilo que sabemos, conhecemos e daquilo em que acreditamos. Isso conduz a um impacto sobre como pensamos em nós próprios.
É, portanto, um processo exigente e doloroso. Doloroso, não no sentido traumático, doloroso porque obriga a nos questionarmos. Essas interacções constante com diferentes dimensões promovem um processo criativo rico que abrem, constantemente, novas possibilidades. Não é que esteja a fazer publicidade, mas o Picasso é um óptimo exemplo para o que tento explicar. Se formos pensar na obra artística dele, ao longo da vida, ele teve vários períodos – pintou com técnicas diferentes, temáticas diferentes, com perspectivas diferentes. Portanto, isto mostra que, ao longo da vida, houve uma evolução da técnica, mas também houve a evolução da pessoa. Isto, porque pintou temas diferentes, com contornos diferentes. Produziu quadros com uma natureza estética muito diferente. Não só pintou, como desenhou e fez algumas esculturas. Mostra bem estas várias dimensões de interagir e evoluir.
Há a ideia de que quem tem problemas psicológicos é obrigatoriamente criativo. Há também a ideia de que a arte está forçosamente ligada a crises psicológicas. Como psicólogo, como olha para esta questão?
Acho que é uma perspectiva enviesada porque, provavelmente, resulta de alguns artistas da praça pública que, depois, se percebeu que tinham alguma questão relacionada à saúde mental. Mas isso não é uma associação obrigatória, porque o processo criativo é resultado da parte saudável da personalidade. É a parte da personalidade que tenta elaborar a realidade. É a parte saudável que tenta elaborar o sofrimento, não é a parte patológica que produz o resultado. Era o que estávamos a falar há pouco, há artistas que têm uma carreira muito monotemática. Há pessoas mais criativas do que outras e também há quem tenha mais prazer em várias temáticas.
Mas não deixa de ser uma forma de comunicação, nem que seja do artista para si mesmo como forma de se compreender ou organizar…
Sim, é predominantemente unidireccional, mas não deixa de ser uma forma de comunicação. Aquilo que o artista produz transporta a perspectiva do artista, o estado de espírito do artista
Sim, claro.
Nesse sentido, portanto, o artista projecta-se nas obras que produz. Então, quando é exposto, faz-se uma ponte com o público. Não é um diálogo, mas não deixa de ser uma espécie de comunicação. O próprio termo que designa a apresentação dos trabalhos é ‘exposição’, ou seja, o público não está, propriamente, a comunicar com o artista, mas o artista não deixa de comunicar.