Julián Fuks e a literatura de intervenção

por Miguel Fernandes Duarte,    15 Agosto, 2020
Julián Fuks e a literatura de intervenção

Num mundo cada vez mais polarizado, onde, ao contrário do que se previa há uns atrás, as desigualdades aumentam como nunca, onde diversos países são governados por líderes sem qualquer respeito pelos direitos humanos, onde a cada dia se rompe o contrato social que se havia estabelecido e compunha uma certa paz social, que papel pode a arte desempenhar?

Vivendo num Brasil em auto-destruição, Julián Fuks, escritor brasileiro que já em A resistência, o seu anterior romance, vencedor do Prémio José Saramago em 2017, mostrara o seu pendor político, propõe-se desta vez escrever aquilo a que se poderá chamar literatura de intervenção. A ocupação, assim se chama o novo romance, editado pela Companhia das Letras, transporta-nos novamente para a voz de Sebastián, alter-ego de Fuks, desta vez para nos transportar também, com ela, para a voz de outros.

Tudo começou quando Fuks foi convidado para participar na Residência Artística Cambridge, com sede no Hotel Cambridge, um antigo hotel de luxo em São Paulo, deixado ao abandono e, entretanto, ocupado por um grupo de sem-teto, ou, como dizemos em Portugal, sem-abrigo. É a esse antigo hotel que Sebastián se desloca em A ocupação, e é à voz dos habitantes reais do Hotel Cambridge que dá o microfone. Desde Preta Ferreira, ativista do grupo Frente de Luta por uma Moradia, ao refugiado sírio Najati e à haitiana Ginia, as histórias que nos são transmitidas por Sebastián são as deles. A página é ocupada, tal como foi o espaço em que vivem.

Julián Fuks por Renato Parada

Justapostos à situação da ocupação estão os problemas de Sebastián, a doença de seu pai, a vontade da sua mulher de ter um filho após sempre ter dito que nunca o teria. Problemas que o deixam só, isolado, introspectivo, e o levam a interrogar-se precisamente daquilo que Julián Fuks se interroga: que papel poderá um escritor ter num tempo de convulsões sociais? Parte daí a busca pelo Hotel Cambridge e pelas histórias que lá habitam, histórias quase sempre relegadas à subalternidade a que relegamos também aqueles que as transportam.

O que seria o foco individual no escritor passa, então, a ser um espaço de exposição, uma tentativa de expôr o colectivo e as histórias individuais que emergem daquela ocupação, uma vontade de dar corpo a palavras como sem-teto ou refugiado.

“Eles nos querem vagabundos, nos querem bandidos, maltrapilhos, indigentes. Querem que nos falte tudo, país, terra, casa para viver, chão para morrer. Esse é o erro deles: não sabem que somos todos refugiados, não sabem com que força os refugiados se fincam na pedra, como chega fundo a raiz do desterro”

Quem o diz é Ginia, por entre a frustração com o papel que lhe é atribuído ao referir ser haitiana. Transforma-se automaticamente numa espécie de atração, um boneco representante da tragédia que foi o terramoto no Haiti e não um ser humano com uma história e um trauma próprios.

Mas por entre a boa vontade de Fuks em romper este ciclo, o carácter fragmentário do livro acaba por se mostrar curto. Nota-se claramente o cuidado de Fuks em não se apropriar destas histórias, já que ele próprio expõe os paradoxos desta ocupação literária numa carta que Sebastián, que é mesmo como quem diz o próprio Fuks, escreve ao também escritor Mia Couto, incluída no livro.

“Estou escrevendo um livro sobre a dor do mundo, a miséria, o exílio, o desespero, a raiva, a tragédia, o absurdo, um livro sobre esta interminável ruína que nos cerca, tantas vezes despercebida, mas escrevo protegido por paredes firmes.”

Balançando nesta fronteira, é inegável que Fuks consegue trazer a questão dos sem-teto e dos refugiados para a esfera pública. Mas, infelizmente, Preta Ferreira, Najati e Ginia não deixam de ser meros oradores, mais transmissores da sua história que participantes numa narrativa que continua a ser uma extensão dos problemas do narrador. Porque, no fim, o que mais custa é os problemas de Sebastián serem aqueles com os quais mais nos identificamos.

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