Tristes analepses de uma frágil democracia
Em mais um dos já muitos momentos de peculiaridade, o Chega – partido político que nos faz relembrar que os valores de Abril não são inabaláveis – levou a discussão, em sede de convenção, uma moção que defende a remoção dos ovários às mulheres que passem por um processo de interrupção voluntária da gravidez quando não haja perigo para a sua saúde, malformações fetais ou no caso de ser uma gestação fruto de violação.
Se, num panorama concreto, tal proposta viola diversas bases jurídicas, como o princípio da dignidade da pessoa humana ou da proporcionalidade, e, igualmente, a autonomia e autodeterminação que qualquer ser humano deve poder possuir na sua vida, é, igualmente, verdade que, num panorama mais geral, a simples votação desta proposta faz-nos soar um alerta de aproximação de perigo para a nossa Liberdade, Democracia e Estado de Direito.
A existência de uma discussão sobre uma moção tão incrivelmente absurda e desfasada de uma realidade justa e protetora que se pretende, abre-nos os olhos para o que está a acontecer: de repente, o surreal passou a real, o escandaloso tornou-se banal e o respeito desapareceu para dar lugar à falta de ética – e noção.
Medidas como a castração de pedófilos ou o combate à sensibilização e consciencialização das pessoas para os problemas do mundo – discriminação étnica, religiosa, sexual, de género, entre outras –, ou seja, o tão proclamado marxismo cultural, são outros exemplos de que há quem pretenda andar para trás no tempo.
A possibilidade de aprovação de uma ideia tão descabida, quanto medieval, como esta relativamente ao aborto, demonstra-nos a força que ideologias e formas de pensamento preconceituosas, intolerantes e atentatórias aos valores em sociedade cada vez mais têm. E é tempo de acordar e entender o perigo.
Obrigar uma mulher a, involuntariamente, recorrer a uma intervenção cirúrgica como forma de castigo – porque sim, é isto mesmo – por algo que é legal e um direito seu é uma analepse social, um semirretornar aos tempos em que pessoas eram torturadas e mortas por possuírem um ideal diferente, ou por lutarem por um direito que, na altura, não lhes era, tristemente, concedido. E isto é mais um sinal, como os outros atrás, de que estamos a permitir que a nossa democracia seja atacada por este tipo de movimentos.
Relembre-se o paradoxo da tolerância, de Karl Popper: se tolerarmos tudo, toleraremos intolerantes. Ora, com isto, creio, pensamentos intolerantes ganharão força, o que levará a que certos direitos e liberdades sejam atentados, como se sucede no caso em concreto. Tal não me parece positivo de se suceder.
Não pode, nem nunca poderá haver espaço para o retrocesso. O caminho de uma sociedade é em frente. Seja rumo à utopia ou ao cenário menos imperfeito possível, os ideais que movem uma comunidade deverão ser sempre com foco em valores como a igualdade, o respeito, a tolerância, a solidariedade e a liberdade. Assim, entenda-se a importância da consciência em relação ao perigo pelo qual estamos a passar.
Um pouco por todo o mundo, os pensamentos retrógrados e intolerantes alastram-se pela comunidade. Uma extrema-direita polida e disfarçada, mas que nos dá uns ares daquela que nos assolou, enquanto sociedade global, no século passado, cavalga cada vez mais a uma maior velocidade e com um exército cada vez mais vasto. E se já vimos, no passado, os resultados destes fenómenos, não caiamos no erro de permitir, lá está, uma analepse social.
A história do ser-humano é uma história de lutas e conquistas por direitos básicos, de sobrevivência, mas, acima de tudo, de vivência. Não faz sentido deitarmos agora tudo a perder.
Que não se dê força a este tipo de pensamento. E, para quem defende o mesmo, citando Rodrigo Guedes de Carvalho: tenham noção.
Crónica de Simão Ribeiro Póvoa
O Simão Póvoa é natural de Torres Vedras e é estudante na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Para além disso, cumpre as funções de Vogal da Ação Social da AAFDL e de Presidente do projeto de solidariedade Justa Causa.