O misticismo do poeta Rumi
Enquanto a Idade Média, a ocidente, se professava a partir dos mosteiros e dos conventos, mais a oriente, eram outras as expressões que predominavam. Para além da Idade de Ouro na Índia e no Médio Oriente, da qual fez parte, no atual Irão, aparecia Rumi. Rumi professou o sufismo, a vertente mística do islamismo, na sua poesia, tendo-a escrito no pérsico. Não obstante, isso não o impediu de se tornar profundamente influente um pouco por todo esse Médio Oriente, para além de se tornar numa referência iraniana. Deu, assim, as referências teóricas e práticas para um islamismo mais alinhado com o amor divino e com a obtenção da sabedoria, numa redescoberta de uma caminhada excessivamente orientada para a causa de Alá e não tanto da humanidade.
Rumi nasceu a 30 de setembro de 1207, tendo falecido a 17 de dezembro de 1273. Conhecido como “mestre”, do árabe “mawlana”, nasceu nas redondezas dos atuais Afeganistão e Tajiquistão, em pleno florescer da civilização pérsica. Como grandes influências, teve o poeta Attar (a “alma”, para Rumi), o grande inspirador do sufismo e um grande místico, e o poeta Sanai (“os dois olhos”), defensor do conhecimento divino. Rumi cresceu e viveu no sultanato de Rum (foi onde o poeta foi buscar o nome), um regime político que controlava grande parte da Turquia contemporânea, advindo das conquistas por parte dos árabes sunitas ao antigo Império Romano do Oriente. O seu pai era, também ele, um teólogo e um místico, de seu nome Baha ud-Din Walad, conhecido pelos futuros seguidores do poeta como o “sultão dos académicos”. Vivendo sob as ameaças das invasões por parte do Império Mongol, Rumi e a família foi deambulando entre diversos lugares daquele Médio Oriente. Foi numa destas mudanças que conheceu uma das suas grandes referências, Attar, que lhe inspiraria a seguir a espiritualidade, em especial pelo livro que lhe ofertou: “Asrarnama”, da sua autoria, que abordava as expressões da alma no mundo material.
O anjo salva-se pelo conhecimento,
o animal pela ignorância;
entre os dois o homem permanece em litígio.
Rumi embarcou em diversas peregrinações, fazendo-se rodear por amigos e seguindo até Bagdade, Hejaz, Meca (à qual fez a habitual peregrinação), Damasco, entre outras cidades. Tanto a sua mãe como o seu irmão faleceriam na cidade de Karaman, na atual Turquia, cidade em que Rumi ficou a viver durante sete anos. Rumi casaria por duas vezes, tendo dois filhos em ambos os casamentos. No entanto, Rumi ficaria de vez na cidade de Konya, também ela na atual Turquia, aos 21 anos, onde se fixou para o resto da sua vida. Foi nesta cidade em que, para além de dar aulas, herdando a posição do seu pai numa madrassa (uma escola religiosa), que havia falecido, ensinava uma filosofia: o sufismo. Era o rosto da tariqa (uma filosofia de ensino voltada para a formação das práticas místicas e espirituais do sufismo, com vista a encontrar a verdade (haqiqa)). No entanto, deixaria essas funções para segundo plano quando se tornou jurista, dando sermões e emitindo os seus pareceres legais (as fatwas). Apesar de as relegar, nunca deixariam de ser a tradução mais plena da sua alma e das suas intenções, visto que era na partilha e na sua expressão pessoal e íntima que encontrava a sua realização. Assim, dividia a sua vida entre a família, o trabalho e as suas lições espirituais e místicas.
Porém, alguém entraria na vida de Rumi e lhe viria a transformar as suas perspetivas religiosas e filosóficas. Esse alguém foi Shams-i-Tabrizi, um poeta pérsico que esteve durante quarenta dias em reclusão com Rumi enquanto o fazia orbitar dessa crença centrada na figura de Maomé para uma bem mais ascética, bem menos incansável em relação à obtenção dessa verdade indiscutível e de valor divino. A sua busca, havia percebido, terminava em si mesmo, já que procurava a divindade em tantas fontes externas e nunca a havia reconhecido em si mesmo. Rumi tornar-se-ia, assim, ascético, e dedicaria muita da sua futura poesia a esse conhecimento que travou com esse homem que havia conhecido casualmente. “Divan-e Kabir”, uma coleção de mais de quarenta mil versos, com diversos poemas escritos em persa, mas também em árabe, grego e turco, numa diversidade estilística bastante assinalável, onde se destacam os ghazals (odes árabes com um distinto valor espiritual e transcendental) e rubais (quadras).
Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.Faltam-te pés para viajar?
Viaja dentro de ti mesmo,
E reflete, como a mina de rubis,
Os raios de sol para fora de ti.
A viagem conduzirá a teu ser,
transmutará teu pó em ouro puro.
Rumi fazia-se acompanhar por um companheiro principal, no seio das comunidades de discípulos que albergava, que, por norma, se tratava de um estudante seu, que assumia a responsabilidade de lhe escrever os seus poemas. Era o seu conselheiro direto, que o inspirava a escrever, e que o acompanhou até ao no final da sua vida, no ano de 1273. Um dos seus principais mecenas seria mesmo a rainha consorte do sultanato de Rum, Gürcü Hatun, tendo financiado a construção do seu mausoléu. O poeta encontra-se enterrado na atual cidade de Konya, num mausoléu com o nome Mevlana, que permanece, ainda hoje, como um lugar de culto. Um dos filhos de Rumi, de seu nome Sultan Walad, institucionalizaria a poesia e a filosofia de Rumi num organismo, a ordem Mawlawiyya, que acolheu os seus seguidores. Para além disso, eternizaria os célebres rodopios de dança, que Rumi propôs como uma meditação fisicamente ativa. Dessa dança, advém a cerimónia sana, que materializa a felicidade perante a divindade que vê refletida em Alá. À letra, trata-se de uma lembrança em escuta, que funciona como um culto à divindade. Ainda hoje, esta cerimónia está reconhecida como Património Oral e Intangível da Humanidade pela UNESCO.
Também património oral e intangível foi toda a sua poesia, um conjunto de escritos tão influentes quanto místicos. O seu “Masnavi” – conhecido como o “Corão em Pérsico” – abrange seis livros que, em mais de vinte mil versos, sensibiliza os sufis para o amor pleno e verdadeiro a Deus. Nestes livros, estão, também, anedotas, fábulas e histórias quotidianas, para além de nuances revelatórias do próprio Corão e do “Ahadith”, onde ficaram as notas de Maomé. É uma obra de introspeção, de interpretação dos escritos islâmicos fundida com a ponderação das mais elementares questões filosóficas: o que é a vida e qual é o sue significado. Tudo isto com uma base monoteísta bem definida, sustentada na singularidade de Deus (tawhid), que Rumi incentiva a que seja procurada enquanto se nega a própria existência de cada um. É a forma reflexiva que encontra de, através do amor, estabelecer uma conexão verdadeiramente íntegra e íntima com a divindade. Também a música e a dança, como já referido, são formas que Rumi assinala como práticas de presença do divino e de foco neste, de forma a destruir e ressuscitar a alma, que, agora, se direciona para a verdade, crescendo ao sabor do amor e do abandono do ego. O encontro com essa verdade divina é, assim, a chegada ao perfeito, depois dessa ascensão emocional e mental, que devolve uma alma mais preparada para o dia-a-dia, mais espiritualmente madura e mais predisposta a amar e a criar, sem espaço a discriminações e a proconceitos.
Para além da poesia, Rumi também redigiu prosa e até alguma correspondência. Assim, ficaram imortalizadas as suas palestras aos seus discípulos na obra “Fihi Ma Fihi”, palestras muito coloquiais e de fácil acessibilidade às comunidades mais humildes, para além dos sermões de “Majales-e Sab’a”, onde Rumi faz uma incursão pelos escritos dos seus poetas prediletos, Attar e Sana’i, para além de perscrutar os sentidos mais íntimos dos escritos islâmicos de base, como o Corão. Aqui, também fica patente o seu conhecimento histórico e científico à data, com base no desenvolvimento que alavancou a Idade de Ouro Islâmica. Eram sermões dados a pedido de gente nobre da sociedade e que Rumi dava ao estilo dos melhores oradores do seu tempo. Da sua correspondência, “Makatib” é a mais fiel compilação, em que constam as cartas trocadas com os seus familiares, os seus discípulos e algumas dessas figuras nobres, com um discurso adaptado a cada um dos seus remetentes.
Rumi tornou-se, assim, uma figura proeminente do misticismo lírico oriental. Não obstante, tornou-se, de igual modo, uma figura com um traçado universal, dado os temas tão humanos e humanistas que sempre abordou. Procurou sempre fomentar o crescimento humano em prol de uma ideia de divindade que, no caso do poeta, se coadunou com a religião islâmica. Porém, e por se desvincular da sua teologia mais conservadora, alcançou outros horizontes. Horizontes de paz e de meditação, de uma reflexão que se faz conjunta, embora de necessidade individual. É uma convivência que apela à introspeção para chegar à tão ambicionada harmonia. O misticismo é um dos caminhos para que tal se proporcione, onde se enquadra o sufismo, que faz dele tão especial e singular de se ler, reler, reter e absorver.
Em cada coração há uma
janela para outros corações.
Eles não estão separados,
como dois corpos.
Mas, assim como duas lâmpadas
que não estão juntas,
Sua luz se une num só feixe.