“Desinformação sobre saúde”, uma outra pandemia
Se eu dissesse nas redes sociais que estava a curar uma gripe viral com antibióticos, possivelmente só me desejariam as melhoras. Se eu fizesse uma publicação a resmungar com os testes do Sars-Cov-2, a dizer que eram uma treta, talvez, e apenas, recebesse umas mensagens de uns amigos a explicar que não eram. Se eu dissesse que o limão é um alimento alcalino e a escala do pH não termina no 14, alguém no conforto do seu mundo rir-se-ia de mim, mas até iria ao Google confirmar. Todos estes cenários, de pura partilha de desinformação e confusão de conceitos científicos, seriam, em princípio, inócuos para a sociedade porque eu sou uma cidadã comum, no entanto foram produzidos por celebridades portuguesas com vários milhares de seguidores.
Desta forma, coloca-se em discussão a linha ténue entre liberdade de expressão e propagação de desinformação. Felizmente vivemos num país livre, em que não há censura de opiniões. No entanto, factos científicos não são opiniões, são verdades testadas através do método científico. Assim, quando se partilha algo relacionado com a saúde, não só deve ser algo factual como é moralmente e eticamente errado partilhar mentiras, e neste caso, existe a agravante de colocar em risco a saúde de terceiros.
Atualmente, há quem ganhe dinheiro através do conteúdo que publica nas redes sociais, não só celebridades, como também pessoas cuja popularidade cresceu exclusivamente através das próprias redes, as influencers. Tal como a própria designação indica, elas influenciam porque as pessoas gostam delas e confiam nelas, ao ponto de, da mesma forma que vão comprar o mesmo batom que elas usam, também vão querer seguir a mesma dieta, tomar os mesmos suplementos, fazer os mesmos tratamentos. E aqui está o problema. Verifica-se muitas vezes uma completa inconsciência da própria influência, uma negação da responsabilidade social quando, sem qualquer formação na área, adotam, erradamente, uma postura de conselheiros de saúde.
Relembro que são pessoas com milhares de seguidores, e que têm, muitas vezes, mais alcance do que qualquer profissional de saúde ou plataforma de informação validada. O que será que as motiva a fazer determinadas publicações? Será que genuinamente acreditam naquilo que estão a partilhar e desejam ajudar? Só querem criar “conteúdo” e por isso não se importam como? São pagas pelas marcas de suplementos, por praticantes de terapias alternativas e inventores de dietas milagrosas, para promoverem os produtos? Qualquer que seja o motivo, seria injusto acusar alguém de ser mal-intencionado. Deve exigir-se, sim, consciência do próprio alcance, reprovar qualquer tipo de disseminação de pseudociência e fomentar o hábito de consultar profissionais de saúde antes de abordar publicamente questões relacionadas com a saúde.
Em jeito de exemplo, tal como refere o estudo “Selling health and happiness how influencers communicate on Instagram about dieting and exercise: mixed methods research” [1] publicado na BMC Public Health, devido à confiança que os adolescentes depositam nos digital influencers, estes têm maior tendência a procurar informações relacionadas com a saúde nas redes sociais. Neste mesmo estudo, é referida outra questão importante: a falta de regulamentação. Muitas vezes, uma promoção de produtos, paga pelas marcas, encontra-se dissimulada, sendo difícil para os seguidores perceberem a diferença entre o que é efetivamente uma prática pessoal da influencer ou uma estratégia de marketing. Assim, é sugerido que sejam estabelecidas guidelines, sobre um ponto de vista político, de forma a aumentar a transparência da informação.
Outro trabalho sobre a mesma temática, “Desinformação e Saúde: Uma Perspectiva Bioética”, realizado pelo médico Francisco Goiana da Silva e pelo advogado João Marecos, ressalva a importância de “atualizar a legislação em vigor no sentido de responsabilizar os novos veículos de informação digitais informais, como influencers” [2] .
E porquê que é tão importante esta revisão do conteúdo partilhado nas redes sociais, não só pelas influencers, mas também por páginas de Facebook? O medo, promovido muitas vezes pelo desconhecimento, gera uma ansiedade por soluções mágicas e simples, criando assim um terreno fértil para a propagação de desinformação e charlatões, como por exemplo, os movimentos anti vacinas ou a promoção de terapias alternativas. É também responsável pela tentativa de copiar hábitos de vida irreais em vez de optar pelo acompanhamento por profissionais de saúde, o que pode originar distúrbios alimentares e frustrações profundas, que conduzem à desistência do caminho para uma vida mais saudável. Em adição, outro grande problema da desinformação, é o estigma em relação a certas doenças, como é caso das Infeções Sexualmente Transmissíveis.
Em relação a tudo o que foi referido anteriormente, não pode deixar de ser assinalado um dos fatores responsáveis pela disseminação de desinformação: a iliteracia em saúde. Segundo a OMS, a literacia em saúde é definida por “obtenção de um nível de conhecimento, habilidades pessoais e confiança para atuar de forma a melhorar a saúde pessoal e comunitária, mudando estilos de vida pessoais e condições de vida. Assim, a literacia em saúde significa mais do que ler panfletos e marcar consultas. Ao melhorar o acesso das pessoas às informações de saúde e sua capacidade de usá-las de forma eficaz, a literacia em saúde é fundamental para o empoderamento.” [4]. Ou seja, não queremos uma população formada em medicina, mas sim informada o suficiente para tomar decisões conscientemente.
Infelizmente, de acordo com os resultados do Inquérito sobre Literacia em Saúde em Portugal 2016, (ILS-PT), “comparando com os países participantes no Health Literacy Survey EU 2014 (HLS-EU), Portugal é o país que apresenta menor percentagem de pessoas com um nível excelente de Literacia em Saúde (8,6%) e com a média europeia (16,5%). Encontra-se em 2º lugar no que se refere à percentagem de pessoas com nível suficiente de Literacia em Saúde (42,4%), sendo que a média europeia é de 36%. No que se refere à percentagem de pessoas com um nível problemático de Literacia em Saúde, Portugal apresenta um valor mais elevado (38,1%) do que a média europeia (35,2%). Com nível inadequado, apresenta um valor inferior (10,9%) ao da média europeia (12,4%)” [5,8] . É de realçar que este problema afeta a maioria das pessoas com mais de 65 anos, com baixa escolaridade, e com baixos rendimentos económicos, denominados no inquérito por “Grupos muito vulneráveis”. Estas características também são fatores predisponentes para certas doenças. [6,7]
Apesar de, com a pandemia, se ter tornado mais frequente a presença de médicos no espaço de opinião pública, existem vários problemas na comunicação entre os profissionais de saúde e a sociedade, que são uma causa da iliteracia da mesma. Quantas vezes tivemos vontade de pedir ao médico para explicar as coisas de novo, mas desta vez em português? Por sua vez, já foi a alguma consulta em que o médico não estivesse a olhar para o relógio e simultaneamente para lista gigante de doentes, que precisava de atender naquela manhã? Em algum horário nobre da televisão portuguesa ficou esclarecido sobre a Diabetes Mellitus? Até se lembra de ter uma aula de educação sexual na escola, mas ficou com bastantes questões porque tinha vergonha de perguntar. E aquele senhor que não é médico, mas é muito simpático, e foi convidado para o programa da manhã por isso deve saber do que fala? Todas as situações referidas anteriormente refletem três problemas: má comunicação, seja por falta de tempo ou de capacitação para tal, falta de espaço na comunicação social, e quando há nem sempre é atribuído às pessoas certas ou não há revisão científica, pouca orientação para fontes fidedignas, num mundo em que as respostas estão à distância de uma pesquisa no Google, seria importante solidificar a importância de informação verdadeira e disponibilizar meios acessíveis para o mesmo. Empoderar as pessoas com informação verdadeira é uma forma de prevenção da doença, é uma forma de salvar vidas.
Para concluir, a disseminação de desinformação e a iliteracia em saúde são problemas complexos, mas já existem soluções a serem aplicadas e outras a serem investigadas. Em Portugal, existe um plano de ação [8], criado pela DGS, para combater a iliteracia em saúde com várias propostas de atuação. Um ponto interessante neste plano, que vai de encontro ao início deste texto e com o qual concordo plenamente, é o envolvimento de influencers no processo. Convidar, capacitar e aproveitar a influência dos mesmos, porque o objetivo não é silenciar ninguém, mas sim promover saúde. Assim, neste processo, todos podemos ser um agente de saúde pública, basta fazer algo tão simples como não partilhar conteúdos que não temos a certeza absoluta que não são verdade.
Referências bibliográficas:
- Pilgrim, K., Bohnet-Joschko, S. Selling health and happiness how influencers communicate on Instagram about dieting and exercise: mixed methods research. BMC Public Health 19, 1054 (2019). https://doi.org/10.1186/s12889-019-7387-8
- https://www.publico.pt/2020/05/04/ciencia/noticia/impacto-desinformacao-saude-premiado-ministerio-saude-1915062
- https://www.who.int/news-room/feature-stories/detail/immunizing-the-public-against-misinformation
- https://www.who.int/healthpromotion/health-literacy/en/
- http://repositorio.insa.pt/bitstream/10400.18/4111/1/Boletim_Epidemiologico_Observacoes_N17_2016_artigo9.pdf
- https://www.thelancet.com/journals/langlo/article/PIIS2214-109X(19)30045-2/fulltext
- https://www.sph.umn.edu/news/low-education-levels-increases-chances-developing-cardiovascular-disease/
- https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/plano-de-acao-para-a-literacia-em-saude-2019-2021-pdf.aspx
Crónica de Francisca de Figueiredo
Francisca é estudante de medicina, insurrecta por natureza, com os pensamentos à flor da pele e, apesar de tudo, aspirante estóica.