Entrevista. Bernardo Pires de Lima: “Na Europa vivemos entre o comportamento digital dos EUA e a vigilância chinesa”
“Portugal na Era dos Homens Fortes” foi o livro lançado este ano por Bernardo Pires de Lima. Editado pela Tinta da China em pleno contexto pandémico, o livro aborda os “homens fortes” da política internacional nesta época de crise económica e de saúde pública. Dos mais falados Trump e Bolsonaro e a sua forma de lidar com a pandemia, aos nossos ainda mais próximos Orbán ou Erdogan, o livro aborda as suas estratégias políticas e de que maneira este vírus expôs, em alguns casos, a sua incompetência para o cargo que ocupam. Entre a análise às abordagens destes “homens” fortes, há espaço ainda para um optimismo em relação à capacidade das democracias ocidentais para resistirem aos movimentos autoritários e nacionalistas que proliferam e o espaço de diálogo e exemplo que Portugal pode e deve ser neste contexto mundial.
Tivemos a oportunidade de falar com o Bernardo sobre este seu livro, bem como sobre o papel que a moderação e o exemplo dado pelos dirigentes políticos através do diálogo, da compreensão e da abertura à crítica pode e deve ser a chave para uma solução nestes tempos conturbados que atravessamos. No final não faltou também o papel da Cultura como eixo central na fomentação de empatia e coesão social.
Quem são estes “homens fortes”? O título parece carregado de ironia…
A expressão homens fortes não passa pela ironia, passa por repescar aquilo que tem sido um conceito trabalhado na literatura do autoritarismo e do populismo nos últimos anos, os “strongman“. É uma tradução à letra que não tem uma conotação irónica. Acaba por ter no decurso do livro, mas não é uma ironia com que eu me identifique, é mais uma contradição entre os termos aparentes, literais, e o exercício do poder. Isso foi particularmente evidente no caso brasileiro e americano e não é tão evidente no caso húngaro, porque a pandemia também não atingiu — pelo menos numa primeira parte — o país como atingiu os EUA ou o Brasil. Não é também tão evidente no caso turco. As incompetências do exercício do poder não são tão evidentes e o “homem forte” aí não é um conceito que aplicado à gestão da pandemia seja uniforme por todos aqueles que são retratados. O que a expressão encerra é uma prepotência do exercício do poder — e isto é válido tanto para líderes de democracias como para regimes não democráticos, como o caso chinês —, características comuns de desprezo sobre as oposições, sobre a qualidade do debate, uma gestão e conforto com a mentira e um desconforto pelas verdades quando são incómodas. É isso que aproxima líderes de democracias como estas de líderes de regimes autoritários. Esse é que é o momento preocupante da política internacional, quando nós passamos a equiparar o exercício do poder de um presidente chinês a um presidente americano. Não é suposto. A conclusão a que chegamos é que independentemente da diferença de contextos dos dois países, da força da sociedade civil num e menor no outro, o controlo do aparelho e a resistência da administração, há traços e pontos em comum muito graves. Não é suposto que a democracia americana se aproxime do exercício do poder turco ou russo onde a família tem lugar em toda a nomenclatura da Casa Branca, onde o Ministro da Justiça faz quase papel de advogado do presidente e não de defensor do Estado de Direito.
Há uma diluição da separação de poderes, não é?
Há uma diluição da separação de poderes. Estamos nos limites do desprezo constitucional. Felizmente que os americanos — e não era um cenário assim tão bizarro, aquele que aconteceu — ocorreram em massa a estas eleições. Eu tenho sempre dado o exemplo holandês de 2016 — ou o francês nas presidenciais — que quando uma sociedade de uma democracia madura se encontra entre a espada e a parede, entre resvalar para uma proposta política completamente disruptiva a roçar o autoritarismo e uma proposta que, apesar de tudo, consolida o caminho da democracia, é chamada e comparece em massa. Nessas eleições holandesas votaram oitenta e dois por cento dos holandeses. Não é normal numa democracia ocidental. Eu estava expectante por uma mobilização do campo democrata, o que me surpreendeu foi a mobilização do campo republicano. Um e outro foram os candidatos mais votados da história, quer um como derrotado e candidato republicano quer o outro como candidato democrata e vencedor. Isto explica-se pela mobilização das suas bases e dos independentes. Tendencialmente os independentes acrescentam mais valor à base democrata que republicana. A expectativa, quando se está entre a espada e a parede, até agora, nestes ciclos eleitorais muito sensíveis, é de que o lado certo da história vence. Portanto, não é preciso cavalgarmos uma onda de pessimismo em que mergulhámos e também não há dados para isso. Mesmo num quadro europeu, a representação de partidos pró-europeus, cosmopolitas, pode ter tendências lá dentro que resvalem para limites do inaceitável, mas a esmagadora maioria dos parlamentos europeus continua a ter lá dentro oitenta, setenta e cinco por cento de partidos comprometidos com esta grelha. As franjas têm crescido mas não são assim tão influentes como queremos passar. O que acontece é que fazemos um retrato a partir de uma árvore, ou de duas, mais até a Polónia que a Hungria, que tem resistências democráticas muito grandes. A Polónia tem até um carácter revolucionário que quando é chamado aparece. A Hungria é mais “mortiça”.
Porque é que a UE tem tido tanta dificuldade (ou pudor) em aplicar multas ou outro tipo de sanções a países como a Hungria, por exemplo? Será ainda reminiscências das críticas de que foi alvo pela rigidez financeira que demonstrou com os países em maiores dificuldades durante a crise anterior?
Pode ser uma ressaca de uma espécie de comportamento assertivo em relação a quem viola tratados orçamentais. Admito que sim. Acho que tem mais a ver, no entanto, com as repercussões internas de anti-europeísmo que isso pode gerar nos dois países. Mas não podem ser misturados os dois países. Várias Comissões Europeias olharam para a realidade do Fidesz como partido bom da extrema-direita húngara, porque havia um mau, ainda pior. Então ele foi visto como uma espécie de tampão. Isto é verdade. Isso despertaria um radicalismo ainda maior no Fidesz e faria com que já não houvesse nenhum interlocutor na Hungria, no centro-direita europeu. Eu acho que a questão parece muito fácil à luz dos tratados. Os princípios da União Europeia estão no artigo 2.º do Tratado de Lisboa e quem os viola está sob a alçada do artigo 7.º. Os mecanismos para accionar o incumprimento do Tratado são sanções, ou o congelamento de fundos ou a perda de voto no Conselho Europeu. O que a UE fez foi perder o timing disto tudo. O Orbán começa em 2010 uma segunda vida, mais autoritária, conseguindo sucessivas maiorias absolutas no plano interno e de dois terços para as revisões constitucionais. Já a Polónia tem um governo liberal até 2015 e nessa altura é o único país da UE que cresce durante a crise. É aqui que os dois carris se juntam e começam a andar em paralelo. As soluções parecem muito claras à luz do Tratado mas percebo os custos de uma agressividade já fora do timing. Não quer dizer que não se possa corrigir, não estou é certo de que o fórum da discussão orçamental seja o melhor para colocar na ordem do dia a questão do Estado de Direito. A questão é saber que custos têm as sanções nas sociedades atingidas. Isto foi deixado até uma altura em que os países têm ambos direito de veto sobre a discussão orçamental num contexto tão sensível de pandemia e decadência económica na Europa. Beneficiou-se claramente o infrator. Que lições retiramos daqui? Para a próxima mal os sintomas se demonstrem têm de ser atacados, mas isto é válido para qualquer Estado. Não se pode também criar o estigma de que só há dois Estados a prevaricar. Quando há corrupção endémica em Lisboa ou em Bucareste não estamos a falar só da Hungria ou da Polónia. Nós temos de ser justos e quando há violação da Lei, do Estado de Direito, decadência das instituições, da democracia ou da imprensa por via de decisões dos Governos, então as instituições têm de dizer presente, independentemente de quem seja o Estado. Há mais males generalizados para além dos males concentrados na Hungria ou na Polónia.
Esta pandemia pode então ser um contexto para a União Europeia se afirmar nesses países?
Já está a ser. O Conselho Europeu de Junho foi de reafirmação da União Europeia como nunca visto e matou dois coelhos de uma cajadada, dois debates que estavam mortos e enterrados por tempo indeterminado desde 2019 como a mutualização da dívida e a transferência entre Estados por questões de solidariedade financeira. O Conselho Europeu dirimiu as duas questões sem falar delas. Os conceitos é que inquinavam o debate. Ninguém queria falar de eurobonds. Era um debate que ninguém queria participar, mas se não se der o nome às coisas aprovando-as na mesma, o resultado é o mesmo e foi o que aconteceu em Junho, para mais com os pacotes com o volume financeiro que é único na história. A União Europeia reafirmou-se. O próximo passo além dos montantes em cima da mesa são as competências e aí também ficou claro que as competências limitadas ou inexistentes em termos de saúde pública por parte da UE não podem ter os mesmos moldes se quisermos gerir a próxima crise pandémica ou de refugiados. A competência é dos Estados e percebemos que quando a competência é dos Estados em matérias fronteiriças isso dá asneira, não há coordenação.
Mas não se percebe essa “independência” dos Estados quando em termos de Sistemas de Saúde existem Estados ainda subdesenvolvidos não estando todos ao mesmo nível, capazes de dar as mesmas respostas?
Percebe-se, mas têm de se retirar lições. O método intergovernamental para tratar uma questão de saúde pública, transfronteiriça, como um vírus, é por natureza uma questão não nacional. Não se pode deixar à descrição dos Estados, que ainda por cima são muito desiguais em termos de capacidade de resposta de saúde pública, como nós sabemos. O debate está em nós podemos criar um sistema de saúde europeu mais equitativo, justo e distribuidor dos recursos? Acho que é um debate que devemos ter. Podemos criar competências repartidas entre os estados e um centro coordenador da Comissão Europeia, da comissária da pasta para as próximas pandemias? As pandemias são cíclicas, não são de cem em cem anos só.
O Bernardo defende então uma espécie de Sistema de Saúde da União Europeia?
Defendo mais competências para a União Europeia, quer em termos de fronteiras, quer em termos de saúde. (Defendo) um Sistema de Saúde da União Europeia, tal como acho que deve haver um salário mínimo europeu. No ponto de vista da justiça social e do combate às desigualdades e da força dos instrumentos de algumas políticas públicas deve haver uma repartição das competências entre os Estados e Bruxelas. O que não pode acontecer é que estejam todas do lado das capitais. Isso não vai funcionar, como acabámos por verificar. A primeira etapa (do ataque à pandemia) foi catastrófica. Tivemos o caso italiano, depois a questão espanhola. A UE conseguiu aí, num curto espaço de tempo, desde o Conselho de Março até Junho, uma coisa extraordinária, que foi juntar toda a gente à mesa para resolver no plano dos princípios e fundos a levantar, coisas que demoraram quase dez anos na crise anterior. Não se pode estar sempre a martelar na União Europeia antes de conhecer as suas competências, as dos Estados e as que são repartidas. À moeda única também é preciso dar-lhe robustez. Isso implica, ou não, transferências entre os Estados. Nos EUA quando Estado está com dificuldades financeiras o sistema tem vasos comunicantes que salvaguardam a situação. Existem esses papões todos do federalismo, mas se nós abdicarmos desses conceitos no debate o que interessa é estar à altura das circunstâncias e dar resposta às pessoas. Em último caso é isso que as pessoas esperam que a União Europeia faça. Ela pode ter uma construção narrativa aspiracional de um continente de paz, de prosperidade, de esbatimento da desigualdade, com uma voz no Mundo, e isso faz tudo sentido, mas depois na prática as pessoas têm de sentir que a moeda única não é um handicap à sua criação de riqueza. Esta percepção não existia há quinze, vinte anos em Itália e hoje existe. Não existia na Grécia ou no Chipre e hoje existe. Nós temos de construir soluções, na prática, coincidentes com este modelo aspiracional quase de oásis na terra com que a UE se vende aos seus cidadãos, senão o puzzle não joga. Acho que isso vai estar em debate agora na conferência sobre o futuro da Europa cujos trabalhos se vão iniciar e também já está presente na agenda de trabalhos que saiu entre a União Europeia e a Administração Americana, muito bem feito, que começou a ser negociado entre o [Josep] Borrell (Alto-Representante da União Europeia para a Política Externa) e o [Mike] Pompeo (secretário de Estado norte-americano). Isso é também sinal da derrota dos EUA e da administração Trump em relação à China e da necessidade de construir uma frente mais alargada e construtiva e não tão unilateral.
Desde o “Putinlândia” que esperava a permanência no poder ou a ascendência de alguns protagonistas no panorama político europeu lá falados?
Acho que a sociedade moscovita, ou a de São Petersburgo é muito mais rica e viva do que pintamos. Não é por acaso que temos manifestações durante muito tempo, maciças, mas que ainda não passaram a fasquia da organização e da legitimação internacional que precisam ter. Na Polónia também há muito mais vivacidade. O ciclo do Orbán vai acabar um dia destes, também. Há novos partidos com dez, doze, quinze por cento. Isso não surpreende porque a natureza desses regimes é perpetuar-se no poder, com teias de interesse e trocas de favores até aos governadores estaduais. O Estado russo é um bocado mafioso nesse aspecto. O chinês é um bocado diferente, é muito mais complexo. A dispersão populacional é muito maior na China que na Rússia e nós não temos tanto acesso ao que se passa na China como na Rússia, pois a parte que é viva concentra-se mais no eixo ocidental. O que se sabe é que há muitos movimentos, muitas manifestações, protesto anti-poder, sobretudo por questões ambientais, que depois são abafadas ou não têm cobertura. Por isso defendo uma maior integração da China. Já propus um concelho NATO-China, para que através de intercâmbios, da troca de informação e de visitas quebrássemos algumas barreiras que impedem saber muitas coisas que lá se passam. Percebermos através de negociações, de visitas e de estudos s o que é que lá se passa, porque a informação é muito opaca, mesmo na questão da pandemia. É preciso quebrar isso de alguma maneira. A diplomacia é a arte da inteligência de saber cortejar os outros mesmo quando não gostamos assim tanto deles. Isso foi o mecanismo que o Obama e o Biden criaram com o Irão. Perceber melhor, inseri-lo, descongelar as sanções para que a sociedade não empobreça, sobretudo uma onde setenta e cinco por cento tem menos de 30 anos, ou seja, não alienar aquela geração toda e depois inseri-la, não a colocando no ramalhete da Coreia do Norte, legitimando-a como grande potência regional aproveitando assim para perceber o que está ali a ser feito, monitorizando o programa nuclear. Isso, na pirâmide do Estado, que no caso do Irão é tão complexo como o da China, começa a abrir novas tendências, novas vozes mais progressistas que numa eleição tomam conta de uma Câmara Municipal, a seguir constituem grupo parlamentar e às tantas tomam conta de um país em corte com a cúpula teocrática que por razões de idade também vai ter de ser substituída, se calhar com gente mais nova, com mentalidade diferente.
Trump enfraqueceu a posição dos EUA no contexto mundial com algumas posições que tomou, nomeadamente em relação à NATO e OMS. Quais serão as frentes de ataque de Biden?
Acho que a primeira vai ser reintegrar o acordo de Paris. A segunda, não sei se formalmente os EUA saem da OMS pois o processo não é assim tão líquido como um tweet do presidente. De qualquer das formas, há razões válidas para interrogar, ou fazer um inquérito independente à gestão da pandemia e à gestão da informação entre a administração chinesa e a cúpula directiva da OMS, até para protecção da OMS no futuro. Se se finge que tudo correu bem e só porque o Trump criticou então a crítica não tem validade, então a OMS vai partir para a próxima pandemia com os anátemas desta e nunca vai recuperar. O Acordo do Irão requer uma frente com a UE e também com a China e Rússia. A frente interna é que vai ser prioritária, para atacar o desemprego e pandemia. A desprotecção à saúde vai voltar. Há que perceber quais serão os impactos disso no deficit e na dívida, que sinais darão os republicanos de defesa do interesse nacional e não o tribalismo que se tem assistido. Essa parte republicana tem sido a mais duvidosa. O partido republicano ou restitui alguma decência ao seu comportamento ou então será outro bloqueio. Mesmo que os senadores por eleger na Georgia vão para o partido republicano, pode haver pontes suficientes com alguns republicanos no Senado para fazer passar legislação ou a entrada em função de altos quadros da Administração que precisam passar por lá. Acho que o plano interno será a grande prioridade e não as questões de afirmação internacional. Vão haver algumas correcções de direcção, de tom, de forma e conteúdo mas a frente interna é prioritária.
O “trumpismo” ainda não acabou? O Bernardo já falou de um Trump 2.0, mais refinado, que irá aparecer.
Acho que isto foi um ensaio perigoso. Esta votação com um grande populista ou nacionalista será muito mais perigosa. O Trump, apesar de tudo, é uma figura patusca do nacionalismo corrente. Se fosse um Putin à frente isto seria muito diferente. Há ali uma massa muito à mercê da manipulação. No entanto, há formas de “partir” essa plataforma, pela via das minorias e apoio à classe média. Tem de passar por esses dois sectores.
Porque é que conquistas civilizacionais — pelo menos assim as entendo — como a abolição da pena de morte, ou descriminalização do aborto, são tópicos quentes que surgem depois de crises económicas? Trata-se de pegar em temas fáceis para fragmentar ainda mais uma sociedade já de si a ferro e fogo ou é só demonstrativo de que é mais fácil apresentar problemas que soluções?
Podem ser as duas questões associadas a uma outra que não se deve desvalorizar ou menosprezar que tem a ver com uma grelha ideológica que faz parte de uma matriz de proposta política e que, podendo essa ser ou não a nossa, é a de muitas pessoas. Há muitos milhões de pessoas que estão vinculadas, antes de questões internacionais ou cosmopolitas, a questões como o aborto ou a eutanásia. É tão respeitável como nós termos outras prioridades. Outra coisa é esgotares a proposta política nisso. Aí já podemos fazer uma avaliação sobre o proponente. É redutor, é pouco para um partido grande, para a afirmação de um país, no entanto é um erro político estarmos a desprezar o facto de muitas pessoas darem importância a isso. É preciso ter cuidado com as afirmações que se fazem em relação a essas pessoas, pois é esse choque, esse vai-e-vem de agressividade que leva ao momento em que nós estamos. Tal como para nós é perfeitamente natural que duas pessoas do mesmo sexo casem ou adoptem, para um conjunto muito alargado de pessoas pode não ser a coisa mais natural do Mundo. É preciso não as atacar de forma ofensiva, é preciso cuidado na forma como se encaixa dois mundos. Outra coisa é atacar os proponentes.
Mas às vezes são esses mesmos proponentes a cair nas próprias ratoeiras…
Isso é o que não falta. Conservadores que gostam tanto da família ou do valor da família que têm mais do que uma é o que não falta, ou o populista anti-corrupção que depois ajuda grandes empresas e investidores a ir para offshores. Isso é o que é mais fácil de desconstruir, mas desconstrói-se por essa via? Não creio.
Quais devem ser as posturas das redes sociais e meios de comunicação nesse papel de desconstrução? Lembremo-nos, como exemplos, das diferentes posturas dos canais nos EUA quando Trump em conferência dizia ter havido fraude eleitoral, sem qualquer tipo de provas, e do Twitter que agora oculta posts que se provem ser mentira. Qual a opinião do Bernardo sobre esta forma de lidar com este assunto?
Não valorizo muito este súbito papel ético das empresas tecnológicas porque antes disso deveriam pagar os impostos no sítio certo e não fizeram nada disso. No caso da conferência de imprensa, ter um súbito assomo de ética por parte da Fox em 24 horas não faz dela um órgão credível. A leitura de que deve haver uma adaptação entre esses dois mundos é correcta. Estamos todos a adaptar-nos nesta crise dos meios de comunicação, o código deontológico dos jornalistas e a absoluta anarquia de novos órgãos de comunicação — que não o são, pois não têm nenhum código deontológico — e as redes sociais. É importante que não se desvalorize a frente transatlântica porque a Comissão Europeia teve uma batalha nos últimos quatro ou cinco anos sobre regulação das tecnológicas e não conseguiu. O Congresso (americano) chamou a audições os “Zuckerbergs” e também não conseguiu. Quando eles percebem que o ciclo está a mudar então mudam um bocadinho as regras e isso não faz deles um actor credível mas sim meramente táctico. Importante é coordenação política para regulação e chamada à pedra destas empresas todas, que não são chinesas (risos). As Cambridges Analyticas, Facebooks, não são chinesas, são ocidentais. Nem todas as perversidades das democracias ocidentais vêm da China. Vivemos, na Europa, um pouco entalados entre um comportamento digital americano, que lhe foi útil, e a vigilância chinesa, e estamos num espaço normativo cheio de regras e boas práticas que não conseguimos moldar e expandir. Precisamos de alargar a frente.
Há uma crise de identidade de alguns partidos chamados moderados, mas o Bernardo fala em ir buscar novos protagonistas fora do quadrante político. Isso não poderá potenciar essa crise de identidade?
Não sei se o meu raciocínio era esse. Acho é que há líderes políticos que não conhecem o seu próprio país. É preciso distinguir o patamar do contributo cívico daquilo que será uma vocação mais política ou até envolvimento partidário. O envolvimento político não tem de ter envolvimento partidário. Nenhum Governo, com pandemia ou sem pandemia, com o dia a dia que tem, consegue pensar estrategicamente o que quer que seja. É uma fatalidade das democracias e isso tem um custo. Precisam de respirar. As pessoas ficam fartas do curtíssimo prazo, da reacção à reacção, e às tantas ninguém respira. Não há discurso para as gerações mais jovens.
Os partidos estão fechados na sua cúpula?
Estão fechados. O recrutamento é fictício, muito à base de conhecimentos. É preciso respirar e criar com alguma antecedência, antes dos ciclos eleitorais. Nos partidos, nas fundações…. As ditaduras têm mais margem para pensar a longo prazo que as democracias (risos), mas não faz mal que se criem, dentro dos gabinetes, como muitos países já têm, núcleos ou células desfocados da agenda diária do seu governante e pensar um pouco mais à frente. Trazer novos temas à agenda. [O Grupo de Reflexão Sobre o Futuro de Portugal constituído por quadros da geração pós 25 abril com percursos de sucesso e sem filiação partidária que se reuniu com o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa ] É um exemplo de que é possível trazer à esfera pública pessoas sem trajecto partidário e sem intenções políticas. Há pessoas assim. Há gente que pensa primeiro no país que no seu umbigo. É preciso fazer um bom trabalho de recrutamento, tentar perceber quem tem sensibilidade, quem tem espírito crítico, pois esse espírito crítico é que é bom para o político. Pode haver determinados políticos ou uma escola política que não gosta de ser criticada, só gosta de “yes, man”, mas há outra que gosta de ser confrontada com o facto de ter dito ou feito uma coisa errada. É isso que torna a política pública melhor. Obviamente que não quero ser ofendido, mas estou à vontade para ser criticado se isso melhorar o meu trabalho. Um político, sobretudo um político que queira ascender com cabeça tronco e membros, tem de saber lidar com a crítica. A biografia do Obama é boa nesse sentido porque ele era muito mais ouvinte, um tipo de reflexão, uma pessoa que gosta de ouvir, de ser criticado e perceber onde estava errado para ir sempre melhorando. Eu acho que esse é que é o comportamento certo. Não é uma pessoa ir com vícios de jotas, que acham que sabem tudo. São uns velhos novos, e depois chegam à política sénior com o rei na barriga. Há muita margem para fazer coisas boas. Não tenho nada uma visão catastrófica. Se tivesse já teria ido para outro país com os meus filhos.
Optimismo e não desespero, portanto.
Acho que estamos a passar um mau momento e a Cultura é um dos sectores mais afectados e foi o sector que nos “salvou” da pandemia. É inteligente política e animicamente para o país colocar a Cultura na linha da frente. Não é “atirar” dinheiro para a Cultura — apesar dela precisar de dinheiro — , é colocar a Cultura como um vértice estratégico de coesão social, anímico e de possibilidade criativa. Somos muito criativos. Trata-se de extrair aquilo que temos de melhor tendo a Cultura como campo. É um mar de oportunidades. Agora, um político que está ocupado a tapar um buraco, a resolver uma nomeação, não tem tempo para isto. E tem de estar ocupado com aquilo ou com isto? Se calhar temos de mudar a lógica de fazer política de alto nível.
Esta entrevista também teve o contributo de Rui André Soares.