Borges contra a banalidade na escrita

por Paulo Rodrigues Ferreira,    18 Dezembro, 2020
Borges contra a banalidade na escrita
Jorge Luís Borges / DR
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Admiro a capacidade que certos autores têm de escrever textos que podem ser lidos em qualquer tempo e lugar. Não é coisa pouca publicar algo que é mais relevante que o jornal do dia, e que leva escribas dotados da mais cruel das mediocridades a flagelarem-se por darem à estampa poemas cuja vitalidade dura o tempo da escrita. Jorge Luís Borges é um desses imortais que sempre nos relembra da nossa pequenez e nos reconduz para o caminho da sabedoria, mesmo quando se debruça sobre temas que à partida parecem desinteressantes. Ao ler recentemente um curto ensaio literário intitulado “La supersticiosa ética del lector” (1932), fiquei com a sensação de que Borges se dirigia não apenas aos escritores do seu tempo, mas aos jovens poetas portugueses, brasileiros e americanos, e a todos aqueles que tentam inventar uma escrita feita para impressionar, mas acabam por cair no buraco da sua própria vaidade. Escreve o argentino que a condição indigente da literatura argentina, a sua incapacidade de atrair, produziu uma superstição do estilo, uma distraída leitura de atenções parciais. É sua opinião que aqueles que padecem dessa superstição entendem por estilo as habilidades aparentes do escritor, as suas comparações acústicas, a sua pontuação e sintaxe, um rebuscamento linguístico que supostamente acrescenta profundidade ao texto.

Condição indigente das letras, incapacidade de atrair. Expressões fortes. Afirma Jorge Luis Borges que é típico de uma cultura em crise dar preferência a uma literatura baseada no estilo, em ocas artificialidades que começam no nada e no nada desembocam. Afinal, uma cultura em crise é uma cultura sem ideias, sem profundidade. O estilo comanda a prosa, sustentará algum dos defensores dessa maneira de encarar a escrita. Se assim é, se é a qualidade ou o rebuscamento da prosa que dita a imortalidade de um livro, podemos pressupor que essa imortalidade não dura mais do que dois meses. Ao apostar exclusivamente no estilo, o escritor desperdiça uma boa oportunidade para escrever uma obra densa em significados e ideias. Deixa de influenciar, de comunicar com o leitor, para ser um narciso que se encanta a si mesmo. Quantos romancistas se têm perdido num fútil exibicionismo estilístico, numa exibição de talentos que provoca vergonha alheia? O começar do capítulo com palavra de dicionário. O ensaio sobre um assunto irrelevante como a rega de jardim, que logo na primeira frase desengole os autores lidos na universidade (Lacan, Kant, Benjamin, etc.). O estilo, como um bom fogo de artifício, é fundamental para a digestão de um livro, mas só por si não basta, não é suficiente para contagiar uma cultura, uma comunidade, pois uma obra desprovida de conteúdo intelectual é fruto de um cérebro coxo, de um olhar que não leu, ou que leu mal. E o olhar que leu mal foi aquele que precisava de se educar mais.

Por estilo entendemos os floreados, o regar do texto com vírgulas e adjectivos, o rebuscamento verbal, a saturação lexical que tantas vezes converte a prosa em algo cerrado, ilegível, oco. Borges não era um lírico, a sua prosa vive das ideias, da imaginação. A sua escrita vale pela inteligência, cultura e subtileza. Borges oferece vários mundos, inúmeras possibilidades de leitura. Cada conto seu pode ler lido a partir de trezentas perspectivas. Mas nos seus textos não vislumbramos uma palavra desnecessária, um ornamento largado ao acaso, ramalhetes verbais, porventura belíssimos, mas bacocos, pífios. A banal superficialidade de uma literatura alimentada por lirismos que se embasbacam consigo mesmos não existe na obra de Borges. 

O crítico que lê Borges procurando frases esbeltas, dessas de levar às lágrimas ou ao optometrista, corre o risco de não as vislumbrar. E se for um crítico parido pela crise das letras e da cultura, um crítico desprovido de ideias, dirá: Borges não me seduz. Ou antes: Borges é seco. Ou até: Borges aborrece. A obra que desobedece aos critérios do estilo chateia o crítico contemporâneo, esse tal filho da crise. Voltemos à “Supersticiosa Ética do Leitor”. Nesse ensaio, assinala Borges que parte da crítica não sabe ler Quixote por abrir o livro com as lentes do estilo, desvalorizando o caráter psicológico da obra. Porém, nota o génio que Cervantes se interessa demasiado pelos destinos de Quixote e Sancho para se deixar distrair pela própria voz. Podemos então concluir que abrir um livro em busca da frase redonda puxa-nos para o vazio, para o interior de nós próprios. Seguindo essa via, vivemos sem ideias, inspirados por meros artificialismos. Perdemos a ciência, a história, a filosofia. 

A aspereza de uma frase é tão indiferente à genuína literatura como a sua suavidade. A escrita lírica é tão ou mais válida do que a escrita mais desprovida de lirismos, e esta é afirmação que devasta milhares de aspirantes a Luis de Góngora, poeta Barroco espanhol. Montaigne, Dostoiévski ou Tolstói não se alimentam de adjectivos, de surrealistas distribuições de vírgulas, de frases bem esgalhadas. Cada um desses autores oferta um mundo. Muitos mundos. Todos os mundos que quisermos visitar, se não tivermos o olho cego pela beleza formal. A página da perfeição, a página em que nenhuma palavra é passível de ser alterada sem dano, é a mais precária de todas. 

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