O valor epistolográfico
Quantas cartas receberam ou enviaram (ou escreveram e não enviaram) ao longo deste ano que passou? Certamente esperaram muitas vezes pelo carteiro na janela devido ao ano atípico e à necessidade das compras online, mas rara vez (ou mesmo nunca) essa espera se sucedeu em prol de uma carta.
O estilo da epístola está cada vez mais esquecido. Ainda que alguns acreditem que as mensagens rápidas a possam substituir estão enganados. Basta notar que as mensagens rápidas que enviamos a partir dos nossos telemóveis se assemelham muito à forma como falamos se estivéssemos na presença da pessoa com quem comunicámos (aliás, muitas das vezes conversarmos através de mensagens de voz, vídeos ou fotos, o que retira ainda mais o tom da palavra escrita). O instantâneo do envio/receção coloca-nos sobre um cadafalso – o da ilusão da distância.
Na carta não há presença, nem quem escreve está perto de quem lê, nem quem lê está perto de quem escreve. O envio e receção requer sempre, pelo menos, um dia ou dois. Já nas mensagens, o estado “online” ou “offline” dão conta dessa presença. As interações curtas, rápidas e constantes não criam o espaço que a carta cria – por exemplo, o espaço geográfico. Sentimo-nos a um clique da pessoa, ainda que essa esteja do outro lado do mundo, e porquê? Porque estamos mesmo à distância de um clique.
O corretor automático inibe a revisão detalhada daquilo que se vai escrever, a rapidez de resposta evita os mal-entendidos, etc.; em suma, a mensagem é fria, distante, ainda que nos pareça o contrário. Posto isto, não acho que as mensagens sejam um avanço negativo da nossa geração, muito pelo contrário. Parece-me até que tudo o que salientei são aspetos positivos e que vieram trazer progresso no desenvolvimento social.
Mas deverá a epístola ser esquecia em prol da mensagem rápida? Não!
Tenho lido algumas obras de correspondência, como por exemplo as cartas entre Hannah Arendt e Martin Heidegger, ou entre Paul Celan e Ingeborg Bachmann, ou Luiz Pacheco e João Carlos Raposo Nunes, as cartas de Rimbaud, entre outras. Denoto o valor que a carta tem e rapidamente percebo que a mensagem rápida não chega perto disso. Não consigo imaginar, por exemplo, uma obra composta por mensagens rápidas.
Mas que valor podem ter as cartas para uma geração como a nossa, que cada vez mais parece autónoma em relação às mesmas? Parece-me que a epístola adquiriu um valor maior – sendo escassas, são utilizadas ou redigidas numa forma silenciosa: numa tentativa de expressar aquilo que discurso não consegue. Como se de um silêncio dactilografado se tratasse. As entrelinhas dos sentimentos quotidianos, o expressar dos sentimentos, o relato das dores pessoais ou sociais. Se a carta não for enviada torna-se muito semelhante à página de um diário. Só quando é partilhada, quando é remetida a outrem, é que o silêncio se faz escutar.
Penso que é possível recuperar o estatuto da carta, mas de uma maneira totalmente diferente, como uma progressão. Ao remeter à pessoa que lê o silêncio de quem escreve, é possível que ambas se encontrem tête-à-tête perante uma distância abismal. Ao ler uma carta, em pleno século XXI, nunca se regressa da mesma maneira à qual nos dirigimos antes de ler, há uma consequência da sua leitura – esta consequência é agora mais acentuada.
No tempo em que as cartas vigoravam para tudo, desde trabalho, convenções socais, amor, amor em sigilo, despesas, postais rápidos, memórias, etc., o seu valor era mutável e banal. Agora, numa Era praticamente virtual, onde tudo o que mencionei aos poucos se vai integrando nessa esfera, resta-nos a profunda sinceridade – a entrega completa e sincera de cada palavra redigida.
Crónica de Márcio Luís Lima