O ódio, o choque e as lições a tirar da invasão do Capitólio
Enquanto o Capitólio era invadido por protestantes pró-Trump, no dia 6 de Janeiro, o mundo estava mais uma vez estupefacto. E não pela primeira vez. O choque tornou-se a mais recorrente das armas na política. Se alguns procuram chocar a todo o custo, outros nunca deixam de se espantar. É então que chegamos à irresistível conclusão do discurso político atual: estamos inegavelmente, profundamente, insidiosamente polarizados.
2020 foi, a vários níveis, um despertar. Um despertar talvez perigosamente tardio que muitos de nós, em sociedades ocidentais, tivemos o privilégio de adiar – Enfrentar o peso da desigualdade apenas em momentos de crise extraordinária é prova do confortável lugar que ocupamos na sociedade. Aqueles que não se podem esconder, aqueles que enfrentam todos os dias as gritantes limitações da nossa democracia não têm a hipótese, ou o luxo, de ignorar as evidências.
Ainda assim, sempre que debatemos, é nestas pessoas que colocamos a responsabilidade da prova. É a elas que pedimos que convençam a audiência da justeza da sua causa, que provem que a desigualdade existe: às pessoas negras exigimos que provem que o racismo é sistémico, às mulheres pedimos que demonstrem que a segurança afinal não está garantida, que nos digam que o direito a governarem os próprios corpos não é em si mesmo evidente. Às pessoas trans, exigimos que provem a sua própria existência… Se políticas identitárias tomaram a vanguarda, é porque a nossa identidade determina largamente a nossa experiência do mundo. Nestas pessoas recaiu não só o ónus da prova, mas também a liderança da luta. E assim o fazem, exigem mais. Não mais do que a maioria, somente o mesmo: o direito à segurança, ao respeito, à dignidade.
Este “eles” pode ser transportado para um “nós”, ainda que convenientemente não o pareça. E isto não é dizer que enfrentamos todos os mesmos desafios, que estamos todos no mesmo barco. Não estamos. No entanto, a manutenção de um sistema que se divide entre “nós” e “eles” beneficia um número extremamente reduzido de pessoas. E aqui encontramos a verdadeira polarização dos nossos tempos — entre aqueles que sofrem e os que beneficiam desse sofrimento. A divisão, a polarização, é o trabalho de alguns, auxiliado pelo silêncio de muitos. É esta a verdadeira minoria que procura subjugar a maioria para seu próprio e exclusivo benefício.
Donald Trump é um deles. Trump não é a voz das pessoas, é apenas a voz dos seus medos. Medos que isola, distorce, ecoa, materializa — transformando sombras em monstros. Isto não é novidade, é apenas uma reafirmação do nosso verdadeiro inimigo. Afinal, aquele que incita um indivíduo contra o outro, é inimigo dos dois. Trump, Orban, Duda, Le Pen, Ventura, AFD, UKIP, Vox… Não são mais que máquinas de medo.
Atente-se que estas considerações não devem ser interpretadas como uma visão apologética das ações daqueles que invadiram o Capitólio. A batalha perderia-se à partida se virmos os perpetradores do ódio absolvidos e representados como meras vítimas. Se não reconhecermos agência no ódio, não podemos reconhecer agência na empatia. A sua raiva, a sua violência não procura libertar mas, sim, sustentar opressão.
Não obstante, pode ser útil interpretar os acontecimentos de 6 de Janeiro à luz de uma outra dimensão. As imagens contam uma história de falhanço: a exaustão da democracia liberal como a conhecemos. Enquanto alguns dos transgressores esperavam a sua vez para se sentarem no pódio do Senado americano, outros displicentemente ocupavam o escritório de Nancy Pelosi — os pés em cima da mesa. Algo é claro: um desprezo absoluto pelos símbolos da democracia. Da mais perversa das formas as imagens revelam um sentimento partilhado por muitos na esquerda: o sentimento de que fazemos parte de um sistema risível, expirado e frágil cujas fundações se assemelham a fantasias decadentes de homens do século XVIII. Um sistema assombrado pela quimera da individualidade absoluta, onde um é absolutamente responsável tanto pelo seu sucesso como pelo seu falhanço.
Entretanto, os poderes do establishment recusam-se continuamente a reconhecer e agir perante a alienação daqueles que supostamente representam. Negam constantemente a possibilidade de mudança estrutural e significativa em nome da moderação. Ao fazê-lo também são culpados. Com as suas palavras bem ponderadas, estéreis e carentes de imaginação; com os seus discursos proferidos com perfeita dicção mas ausentes em sentimento ou intenção; com os olhos vendados à injustiça e iniquidade; vergaram a democracia, esvaziaram-na. Eis la prostrada. Cada promessa vazia de mudança é mais um prego no caixão.
Agora que o mandato de Trump se aproxima do fim, aprendemos alguma coisa? Aprendemos a não apaziguar uma plataforma que se baseia no ódio? Mas mais ainda, aprendemos que na ausência de soluções democráticas, as autoritárias prevalecerão? A nossa tarefa é hercúlea: reconciliar sem impunidade, unir sem silenciar. Encontrar na empatia uma posição de força. Enquanto as janelas do Capitólio partiam, estávamos mais uma vez chocados. Somos assim tão ingénuos?
Crónica de Inês Ribas
A Inês é licenciada em História, estudante de Relações Internacionais e Política Europeia e aprendiz de jornalista.