Amar como no cinema
Vivemos tempos diferentes, em que olhar para um tornozelo já não excita ninguém. Num mundo saturado de selfies e de competições de quem é o mais musculado ou o mais trendy, por vezes esquecemo-nos de coisas simples como o amor. Talvez as dating apps o tenham banalizado, tornando um encontro às cegas em amor súbito, ou talvez tenha sido a pornografia, a criar ideais utópicos de corpos e práticas. No cinema, tentou-se replicar o amor, tal como ele é, a tensão sexual, tal como ela é, mas os esforços revelaram-se (quase sempre) fracassados.
Até que surgiu Kar-Wai Wong. Num tempo estranho em que as salas de cinema se encontram cada vez mais vazias (e hoje chegam mesmo a encerrar), “In the mood for love” foi o último filme que pude ver no grande ecrã, com o mesmo fulgor de 2000, quando ir ao cinema ainda era obrigatório e as plataformas de streaming não passavam de um sonho mal sonhado. Amor, coisa insólita que de repente nos assoberba. Amor, que se materializa em pequenos gestos e olhares fugazes. Amor, que não passa de uma palavra por pronunciar enquanto rostos aparentemente impávidos tentam esconder aquilo que os inflama por dentro. Salvador Sobral canta um verso na música “Só Um Beijo” que bem pode resumir tudo o resto: “Porque o que dizia a tua boca era pelos olhos desmentido”. Também os olhares dos protagonistas de Kar-Wai Wong são a transformação desse verso em imagem, sem socorrer a nenhuma muleta discursiva. Se o cinema não é a arte do olhar, talvez a vida seja também essa arte do olhar.
As paredes do mundo fecham-se, com as salas de cinema e as salas de espectáculo. Mas a vida está também nas caixas de DVD e, inevitavelmente, nas plataformas de streaming (uma versão em miniatura, mas dark times require dark measures). Vejamos então o mundo através dos nossos ecrãs, procuremos um bocadinho mais da verdade na arte. No final, tudo se resume ao amor. E o amor pode estar subitamente encapsulado em quatro paredes por enquanto, mas continua a existir e a reverberar, nem que seja na recordação de um filme a preto e branco. Descompliquemos o simples e procuremos a simplicidade nas nossas emoções mais humanas. Amemos como no cinema, onde o amor não é nada mais do que uma lata de ananás em calda fora de validade.
Crónica de Ana da Cunha
A Ana é licenciada em Teatro-Interpretação pela ESMAE, tendo recentemente terminado uma pós-graduação em Dramaturgia e Argumento. É também atriz e escritora.