Avós da razão
As minhas duas avós ainda estão vivas. Não me tomem como um neto desprovido de empatia pela utilização do advérbio; optei por fazê-lo precisamente pela perceção de finitude que, subconscientemente, paira quando páro, e, conscientemente, me impede de avançar na direção de uma cerveja com amigos ou de uma peladinha com conhecidos. Os meus avôs, amigos e colegas de longa data — curiosa coincidência que para o caso não importa esclarecer — já não. E o que dava para que estivessem.
Ontem ouvi a minha avó paterna mais exaltada que o habitual; mulher de brandos costumes, raramente se chateia com alguém e, a acontecer, logo “lhe esquece” — expressão cunhada por alguém a quem o trabalho no campo não a deixou ir além da quarta classe. Repreendia o irmão por estar na rua, depois do novo recorde de mortos anunciado pelas televisões. Logo a seguir, repreendia-a eu, qual pai tirano, atirando-lhe as normas da DGS, que salvaguardam o passeio higiénico. Tivesse eu tanta exigência comigo e estava agora na linha da frente a combater a pandemia, como a minha irmã, a minha namorada ou outros tantos heróis. Demorei a perceber que o sermão pregado ao irmão vinha do âmago da preocupação, desespero e amor que coexistem no seu cândido coração.
Horas antes, liguei à minha avó materna. Distante fisicamente, reúne ainda mais cuidados que a homónima, mas com um baluarte familiar mais extenso. Defendeu-se da minha pergunta matreira sobre o que tem feito com a única resposta impassível de críticas à sua conduta: “Só vou à fisioterapia.” Bons velhos tempos, em que os ligamentos cruzados eram o nosso maior flagelo. Não sendo de somenos, está além-mar do que um vírus pode fazer ao sistema respiratório de quem o acolhe. Desliguei sabendo que a senhora que lhe presta auxílio nas tarefas domésticas – a dias, como comummente chamamos — testou positivo, juntamente com o companheiro de uma vida, este internado.
Pelo meio, a fotografia de um aglomerado de jovens nas imediações de um concorrido restaurante abeirado de inúmeras faculdades em pleno centro da capital. Podia ser um deles, se não tivesse avós. Se não tivesse pânico das consequências severas de um vírus que vem devastando milhares de vidas pelo mundo fora e que aproveitou a tão afamada hospitalidade lusitana para se gentrificar pelo país de lés a lés e que, cobarde, tem preferência pelos mais debilitados.
Alguém definiu o medo como o sentimento que nutrimos pelo desconhecido. Esse já passou. Agora temo, sobretudo, pelo que já se sabe.
Fiquemos em casa. Cumpramos as recomendações. Para que quando tudo isto acabar, possamos voltar a repetir pela enésima vez aos nossos avós que os amamos: seja pelo amor desbragado que lhes temos ou, simplesmente, porque são surdos.
Crónica de Miguel Ferreira de Araújo