O dia em que fiquei a conhecer Kobe Bryant
Há pouco mais de um ano estava a aterrar pela primeira vez em Los Angeles. Da janela do avião conseguia avistar a planta da cidade, com estradas desenhadas em recta, todas com carros que convergiam para a cordilheira a norte da cidade. A ideia de quem, até então, não havia posto os pés no lado oeste do solo americano era de uma cidade-centro onde indústrias se congregam e a atmosfera está carregada de sonhos e sucesso; um sítio onde o céu nos parece maior e mais aberto, sem arranha-céus a fazer-nos sombra.
Cheguei com a bagagem e expectativas e, desde o primeiro dia, deixei para trás a distância física que havia de tudo e todos que havia conhecido por histórias contadas, o êxtase da proximidade leva a melhor de nós tantas vezes. Se há sítios que provam que a nossa geografia física consegue ser um factor chave para concretizarmos os nossos planos, Los Angeles, é sem dúvida, um deles. O nosso corpo torna-se próximo de tudo o que até então habitava num lugar de falsa proximidade. A linha torna-se esbatida, porém, nunca deixa de existir.
Estávamos no vigésimo sexto dia de janeiro, dia de cerimónia dos Grammy’s, e no meu telemóvel lia-se que Kobe Bryant havia falecido num acidente de helicóptero. ignorei, não fazia ideia de quem se tratava.
Com o desenrolar do tempo e da manhã de sol frio, comecei a entender que estava claramente à margem, tratava-se de uma pessoa que superava a sua mortalidade. Pela hora de almoço desse dia subia o Griffith Park com um amigo que estava na cidade pelas mesmas promessas que eu tinha em mim. Havia nesse sítio uma neblina que se intensificava à medida que subíamos e que nos impedia de sermos ofuscados pela luz do sol.
Segundo o que se apurou, o acidente tinha-se dado ali perto e essa neblina, que já não estava cerrada e já nos deixava ver a extensão da cidade para sul, havia sido a causa do mesmo. As horas passavam e queríamos, mais uma vez, sentir a pulsação da cidade de perto. Decidimos ir para perto do local onde os Grammy’s iam acontecer. Chamámos um uber com destino bem definido, tão definido quanto a falta de pertinência da cerimónia num dia como este. Segundo o condutor da uber que, já desgastado da tristeza da “sua” perda, trocava meias palavras connosco. A cerimónia estava a realizar-se na “casa” de Kobe Bryant.
Chegados à baixa da cidade parámos para comer e assistir à maré de pessoas que se dirigia para o mesmo ponto. No meio delas, os conspiracionistas tão cheios de convicção disfarçada de certeza contrariavam o quão pouco casuais eram as causas da morte de Kobe. Nunca deixarão de ser fascinantes, especialmente pela forma como discursam. Assim que nos levantámos incluímo-nos nessa mesma maré de pessoas que, por instantes, iam lado-a-lado com autocarros que tinham escrito “R.I.P. Kobe”, em vez do seu habitual destino.
Quanto mais nos aproximava-nos de um suposto centro, um sítio onde estar, onde a circunstância a alguns obriga, começámos a sentir o ar mais apertado. O barulho dos carros já só se ouvia ao longe e à porta do Staples Center os movimentos das pessoas que ali estavam eram mais lentos e comedidos. As vozes dos jornalistas, desconcertantes de tão imparciais que assim lhes é exigido ser, furavam o silêncio. De repente, várias salvas de palmas enchiam aquele largo e voltávamos de novo ao ponto de partida: eu e o meu amigo deixámos de falar por largos instantes, ele por ser um admirador de Kobe e eu por estar a admirar cada pessoa que ali estava.
O ídolo desta tinha partido. As letras escritas a giz no chão, a caneta preta nos cartazes, as flores que rodeavam as velas e equipamentos, os queixos colados ao peito que escondiam as lágrimas. Era a morte na forma de fenómeno público.
Do outro lado dava-se início à já esquecida cerimónia dos Grammy’s, pprovavelmente a mais silenciosa até à data. Cá fora não ecoava som algum, apenas a energia que unia todos os corpos estáticos e que pulsavam de círculo em círculo, todos com uma espécie de santuário criado naquele dia para o efeito.
A noite entretanto chegou, por entre as luzes das mil velas que ali estavam, e nós sentimos que devíamos ir embora. No local ficaram as pessoas que, nos dias seguintes, voltaram ali até, eventualmente, o tempo levar a sua avante. Dizem alguns sábios que o tempo cura tudo.
Nos dias que se seguiram a neblina manteve-se, desta vez por toda a cidade e, certamente, por dentro das pessoas que gostavam do jogador de basquete. Foi neste dia e nos que se seguiram que tive a maior sensação de pertença naquela cidade. Não conhecia o Bryant mas conhecia o que as pessoas sentiam. Percebi, por intermédio de um fenómeno inglório, como o Homem pode superar a sua existência e ser glorificado. Foi assim que fiquei a conhecer Kobe Bryant.
Crónica de Tomás Monteiro
O Tomás é fotógrafo profissional.