Entrevista. Miguel Jesus: “Se não existirem pequenas loucuras na nossa vida, não damos os passos”

por Magda Cruz,    6 Abril, 2021
Entrevista. Miguel Jesus: “Se não existirem pequenas loucuras na nossa vida, não damos os passos”
Foto cedida por Miguel Jesus

Dentro de Miguel Jesus há um escritor, um músico e um economista, que dividem o tempo entre si. Publicou o seu terceiro livro, “Lugar para dois”, pela Casa das Letras, que junta literatura à música, numa experiência profunda de leitura. As palavras do livro e as notas da música levam-nos a Lisboa e Moçambique, e contam com participações de Júlio Resende e Selma Uamusse. O livro vai ter um cine-concerto e Miguel já tem as mãos na massa no próximo livro e álbum de música, que vão seguir de mãos dadas. 

Ouve a entrevista na íntegra, feita por Magda Cruz no podcast Ponto Final, Parágrafo: 

Miguel Jesus é formado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e mestre pela na Universidade Católica Portuguesa. Chegou a ser professor na licenciatura de Gestão na Católica; foi gestor comercial e passou por diversas empresas multinacionais até ter as próprias empresas, em Portugal e em Espanha. 

Mas foquemo-nos nas artes da composição musical e literária. No ano passado, Miguel Jesus publicou, pela Casa das Letras, o livro “Lugar para dois”, que foi finalista do Prémio LeYa e que conta a história de Daniel, um lisboeta que procura um lugar pacífico em Moçambique para estar sozinho, mas o que encontra são provações e muita companhia. E como é que ouvimos as músicas álbum Antena 1? A certos momentos, aparecem na história, por entre os parágrafos, códigos QR, códigos feitos de quadradinhos, que nos permitem, com o telefone, ouvir as músicas.  Se estivermos embrenhados nas histórias podemos apenas ler as músicas como poemas, que estão no final do livro.

Miguel é músico profissional há 20 anos e o primeiro álbum que lançou foi em 2011, com o nome “Tempo Ganho”. Desde 2014 que o seu tempo é ganho, em parte, com romances musicais. Foi nesse ano que publicou o que deve ser o primeiro romance musical do mundo, “Até que o mar acalme”, que é para ser lido e ouvido, publicado pela Gradiva.

Dois anos depois, o mundo recebeu o romance musical “O Dia em que o Mar Voltou”, também editado pela Gradiva, um livro que nos faz lembrar o dia do terramoto de 1755 já que Lisboa é de novo engolida pelo mar. 

“Lugar para dois” é a continuação deste esforço de juntar literatura com escrita, e terá um cine-concerto muito especial, que Miguel tem vindo a preparar. Ao podcast, diz que este espetáculo, sem data à vista devido ao confinamento mas já com luz verde de muitas salas de espetáculos, vai englobar todas as sete artes. 

E a primeira coisa com que nos podemos cruzar é que os livros anteriores vêm assinados como “Miguel Gizzas” e “Lugar para dois” vem como “Miguel Jesus”. “Há uma razão muito específica”, diz Miguel no podcast, “Eu de facto sou Miguel Jesus. Quando comecei a enveredar por uma carreira artística, de alguma forma queria me dissociar do facto de ser economista, portanto tinha de arranjar um alter ego. Os meus amigos mais próximos chamavam-me “Jesus” [em inglês]. Na brincadeira, usei esse anglicismo e escrevi Gizzas e foi isso que comecei a usar. 

Mas o percurso artístico de Miguel levou-o à escrita de livros, já depois de ter composto vários CDs. “E foi nesse sentido que comecei a perceber, cada vez mais, um amor pela literatura, um amor muito grande, que eu tendia a diminuir por ser apenas uma ligação necessária a uma nova forma que eu tinha de explanar a arte que era pôr música e literatura, tudo junto. Portanto, não me estava a dar o devido crédito pelo o que estava a fazer na Literatura”: O autor diz sentir uma evolução no que toca à qualidade dos livros que dá ao mundo. “Senti que o salto qualitativo é mais notório”, diz, acrescentando assumir-se claramente como escritor. Neste sentido, o escritor e o músico existem. O escritor Miguel Jesus e o Miguel Gizzas na música, que vai continuar a cantar e tocar as músicas do Jesus. 

Miguel Jesus junta a literatura com a música desde o seu primeiro álbum. “O que era diferenciador no primeiro álbum, e foi isso que me levou a pensar em escrever livros, foi que cada música tinha uma história. Não facilitava naquilo que estava a contar. Cada história tinha um princípio, meio e fim e, portanto, foi isso que me começou a espicaçar nas entrevistas. Eram histórias que estavam ali, histórias sobre coisas que nos rodeiam. Foi na altura em que pensei em criar uma história maior, à volta destas pequenas histórias”. Nesse tempo, Miguel não pensou em escrever um livro. Ao podcast Ponto Final, Parágrafo conta que pensou em criar uma peça musical com um argumento que juntava as músicas todas. 

Agora, em 2021, está a preparar um novo cine-concerto, baseado no livro mais recente, “Lugar para dois”, sobre o qual já sabemos que quem vai interpretar o protagonista Daniel vai ser o ator Ricardo Carriço (que já tinha colaborado com Miguel Jesus noutros projetos e que podia ser a musa de Miguel, um “muso”). Do elenco fazem também parte João Didelet, Nádia Silva, Sofia Nicholson, Soraia Tavares e Silvio Nascimento.

É na página 95 de “Lugar para dois”, de Miguel Jesus, que lemos: “Eu não era de finais, era de um dia de cada vez. Ainda Ihe disse o que ele não ia ouvir: que a vida é como uma música, para ser apreciada a cada nota, a cada acorde. Emociona-nos na resolução de um refrão, nas mudanças de ritmo, na surpresa de um improviso. Mas as pessoas resolveram que não, que é antes como um livro, em que só o fim conta. A vida é feita de durantes, não de finais.”

Este parágrafo não caiu do céu. As palavras tiveram de se juntar, como pequenos elementos isolados que são, para formarem parte da história do mais recente livro de Miguel. E foi depois de se sentar à frente de uma folha e de ver como a história se desenrolava que percebeu que escrever um livro não era impossível. Depois de uma hora a escrever, olhou para o produto do trabalho e pensou “Afinal não é impossível escrever um livro”. Assim, ficou-lhe gravado na memória o seguinte pensamento que partilha no episódio: “Há coisas que eu pensava, até hoje, serem impossíveis, como sempre pensei que era impossível escrever um livro pelo nível de trabalho que dava, quando eu já era músico e economista”. Com isto, Miguel ficou com a noção de que era possível publicar um livro. “E isto é muito importante: a loucura inicial de iniciarmos alguma coisa e dizermos «já tenho ali três páginas. Já não quero perder as três páginas que escrevi, era deitar trabalho fora. Portanto, só me resta o caminho pela frente.» Foi essa loucura que me fez escrever, foi essa loucura que me fez atirar para cima de um palco. Se não existirem pequenas loucuras na nossa vida, não damos os passos”. 

Miguel continua a reflexão: “As pessoas vão dizer que é loucura. Quando estamos no princípio nada vale a pena: temos o caminho todo pela frente. Mas as pessoas que já fizeram o caminho, as pessoas que são os nossos escritores, e para os quais olhamos com alguma admiração, começaram exatamente como nós: sem nada. E muitas vezes não pensamos nisso. Pensamos nessas pessoas como seres eternos, vindo do sempre, que já nasceram com cinco ou seis livros escritos. Não é verdade. Fizeram um caminho que também podemos fazer. E muitas vezes pomos as coisas no lado da impossibilidade”. E conclui: “Nada é impossível”. 

No episódio 41 falamos de um belo trio de livros. Começando com “Coração tão branco”, de Javier Marias, tido como um dos melhores ficcionistas espanhóis contemporâneos, também autor de “Os enamoramentos” e “Berta Isla”. Com “Coração tão branco”, exploramos as narrações detalhadas e os artifícios dos autores para prenderem os leitores desde o primeiro parágrafo. 

O segundo livro que Miguel escolheu para recomendar no episódio do podcast é “made in” Portugal: “Princípio de Karenina”, de Afonso Cruz, que, a par de Mia Couto, Miguel Jesus tem em muito boa conta no que toca a bons escritores portugueses e com influências lusófonas. Para nos explicar as maravilhas deste livro, o convidado lê-nos um excerto que põe a nu a perícia de Afonso Cruz descrever ambientes e criar boas personagens, que insere em situações caricatas. 

Para encerrar o episódio, Miguel traz um livro que lhe foi útil em tempos mais difíceis. O terceiro livro é de Neale Donald Walsch e chama-se “Conversas com Deus”. No livro, Neale explica o seu caminho. Era um jornalista que todos os dias escrevia perguntas para si próprio, como forma de desabafar: “Porque é que isto tinha de me acontecer? Porquê eu?”, por exemplo. E um dia, sentiu algo que o fez responder a si próprio. Sabendo que não sabia as respostas para as perguntas, assumiu que era Deus que falava com ele. Para os céticos, é um livro interessante pela forma e que tem continuação, já que é uma série. 

Ponto Final, Parágrafo é um podcast sobre literatura, conduzido por Magda Cruz, da ESCS FM em parceria com a Comunidade Cultura e Arte. Já conta com 41 episódios principais em três temporadas. Pode ser ouvido em todas as plataformas de áudio.

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