Guerra Junqueiro, a voz poética do Portugal republicano

por Lucas Brandão,    6 Julho, 2017
Guerra Junqueiro, a voz poética do Portugal republicano

Guerra Junqueiro foi uma das personalidades mais importantes da literatura portuguesa do século XIX, e do próprio século XX. Figura com grande dinamismo na crítica social e política, foi, como muitos escritores lusos, licenciado em Direito na Universidade de Coimbra, revelando-se esta como um fluxo de grande inspiração e expiração literária. Foi pela poesia que mais se destacou, de forma exaustiva e popular, redigindo com o devido lirismo sobre a atualidade portuguesa, prestes a cambiar da monarquia para a república. As narrativas também assumiram papel importante na sua carreira literária, obra e vida de alguém que desbravou mundo, e que diversificou aquilo que a sua mente e alma acolheram.

Abílio Manuel Guerra Junqueiro nasceu na freguesia de Ligares, em Freixo de Espada à Cinta, no dia 15 de setembro de 1580. Crescendo no seio de uma família tradicional abastada, em que o pai era um lucrativo negociante do que lavrava nesta região trasmontana, sofreu um rude golpe na tenra idade de 3 anos, em que a sua mãe faleceu. Os seus estudos, porém, prosseguiram, tendo concluído os preparatórios na cidade de Bragança, e ingressou, em 1866, no curso de Teologia, na Universidade de Coimbra. Tendo, contudo, sentido que não existia vocação da sua parte nesse caminho, matriculou-se em Direito, dois anos depois de ter chegado à cidade, e concluiu esta graduação em 1873. Após o seu período de estudante, passou a exercer funções públicas, em especial como governador civil de distritos vários, como Viana do Castelo, ou Angra do Heroísmo. Numa fase na qual as eleições davam os primeiros passos, foi eleito, pelo círculo de Macedo de Cavaleiros, deputado, no ano de 1878. Tudo isto sem esquecer a paralela carreira literária, que o ligou a uma série de órgãos de comunicação de então; e a própria atividade agrícola na propriedade familiar do Douro.

Quanto à sua literatura, tudo começou em tempos de academia, no qual redigiu para o jornal literário “A Folha”, sob a tutela do poeta João Penha. É aqui, numa fase de imenso debate e produção literária e social, que priva com vários nomes daqueles que fariam parte da Geração de 70, tais como Eça de Queirós, e Antero de Quental. Este movimento tinha, como objetivos fundamentais, revolucionar a criação artística portuguesa, propondo-a como o mote de uma renovação da sociedade lusitana, ainda atrofiada nos velhos costumes romancistas e isolacionistas. Desse modo, as reuniões permitiam o contacto com várias obras de origem europeia, apresentando aquilo que de novo surgia nesses países. Tanto ao nível ideológico como cultural, o pendor tornava-se acentuadamente realista, propondo a literatura como um esteio fulcral a percorrer os trilhos que distavam de França ou da Alemanha. Assim, reunia-se com nomes como Ramalho Ortigão, e Eça de Queirós, nos “Vencidos da Vida”, designação dada a essa Geração pela mesma, almejando discutir o passado, o presente, e o futuro da atividade cultural europeia.

Individualmente, Junqueiro revelou vocação para a poesia, figurando como uma das promessas neste género literário para os finais do século XIX. Enquanto vivia em Coimbra, publicou “Lira dos Catorze Anos”, uma obra onde dispunha de diversa poesia, para além de “Vitória de França” (1870, reeditado na cidade dos estudantes em 1873), e de escrever “O Aristarco Português” e “Baptismo de Amor”. Porém, parte da sua produção literária deu-se na cidade do Porto, contando com o apoio das editoras Casa Chardron, e Casa Moré. Sem nunca descartar a realidade internacional, dedicou, pouco depois da proclamação da república em Espanha, em 1873, “À Espanha Livre”. Elogiado pelos autores Camilo Castelo Branco e Oliveira Martins em artigos públicos, à conta do poema “A Morte de D. João” (1874), passou a colaborar com diversas publicações artísticas e literárias nacionais, tais como “Renascença” (1878-79), “Branco e Negro” (1896-98), “Serões” (1901-11), “Azulejos” (1907-09), “A Republica Portugueza” (1910-11), e “Atlantida” (1915-20), assinando “Viagem à Roda da Parvónia” (1876) com o autor e jornalista Guilherme de Azevedo.

Foi neste período que voltou a mudar de residência, passando a viver em Lisboa, e ganhando algum sustento financeiro na sua participação, a partir da prosa e da poesia, em jornais políticos e outros socialmente críticos, como o “A Lanterna Mágica” (1879-85), e “O António Maria” (1891-98). Aqui, travou conhecimento, e desenvolveu trabalhos em sinergia com o ilustrador Rafael Bordalo Pinheiro. As narrativas, porém, permaneceram bem vivas na vida e obra do autor, redigindo “Crime” (1875), sobre o assassinato do alferes Palma de Brito, para além de poesia em tributo aos veteranos liberais, e até de contos para crianças; destacando-se “Fiel” (1875), e o conto “Na Feira da Ladra” (1877). Grande parte do seu trabalho poético segue compilado em “A Musa em Férias” (1879), seguindo-se vários poemetos – poemas curtos, onde se destaca “O Melro” – e outras experiências narrativas, tais como sátiras.

Deixai ver o Sol doirado
À infância, eis o que eu vos peço.
Esta escola é um atentado,
Um roubo feito ao progresso.

Vamos, arrancai a infância
Da lama deste paul;
Rasgai no muro Ignorância
Trezentas portas de azul!

O professor asinino,
Segundo entre nós ele é,
Dum anjo extrai um cretino,
Dum cretino um chimpanzé.

Empunhando as rijas férulas
Vós esmagais e partis
As crianças — essas pérolas
Na escola — esse almofariz.

Isto escolas!… que índecência
Escolas, esta farsada!
São açougues de inocência,
São talhos d’anjos, mais nada.

‘A Musa em Férias’ (1879)

A sua vida prosseguiu fora do país, tendo vivido em Paris, onde, segundo consta, se deslocou para debelar uma doença gástrica que sofreu durante o período em que esteve nos Açores, como secretário geral do governo civil, para além de redigir artigos de discussão científica no jornal “Revue”. Foi aqui que teve a oportunidade de contactar com a obra conhecida e vivida de Victor Hugo (a quem foi sobejamente comparado), com as estrofes vigorosas de Charles Baudelaire, com a filosofia historiográfica de Jules Michelet, e com as visões políticas anárquicas de Pierre-Joseph Proudhon, para além da vida boémia das noites parisienses, incluindo o vaudeville e as óperas. No regresso ao Porto, trouxe “A Velhice do Padre Eterno”, expondo uma dura contestação às classes clericais. A política começou a entranhar-se ainda mais na sua personalidade pensativa e literária quando surgiu o ultimato britânico, no ano de 1890, quanto ao mapa cor-de-rosa. “Finis Patriae” seria a obra que aglomeraria todo esse desagrado em relação ao decurso do episódio diplomático.

Outrora monárquico, Junqueiro justificava-o por considerar que esta era o regime político mais adequado para as caraterísticas do país. Porém, a reação lusa a essa celeuma, que considerou como subserviente da parte de Portugal, foi o catalisador para diferentes composições poéticas de descrédito e de desencantamento em relação às estruturas monárquicas. Apesar disso, havia aderido ao Partido Progressista em 1879; e declarado a sua simpatia pelo movimento “Vida Nova”, que era apologista de uma efetiva intervenção do rei nos assuntos do Estado. Ainda assim, nunca foi o mais conivente com a existência de uma monarquia na vigência política.

No que toca à sua vida pessoal e familiar, casou em 1880 com Filomena Augusta da Silva Neves, tendo Maria Isabel (1880), e Júlia (1881), esta que seria internada no Porto por alegada demência. A sua esposa viria a partir nove anos depois do matrimónio, facto que seria lamentado por Junqueiro para o resto da sua vida. De forma a garantir um pouco mais de solvência financeira, vendeu a sua farta coleção artística, referenciando a carestia em trabalhos como “Oração ao Pão” (1902), e “Oração à Luz” (1904), sem deixar de criticar a atualidade de então. Continuando a sua itinerância, viveu três anos em Vila do Conde, voltando para o Porto depois desse período. Com uma crescente aura republicana a pairar na cidade invicta, sentiu-se seduzido pela sua força partidária, e tornou-se candidato regional pelo Partido.

Que durmam, muito embora, os pálidos amantes,
Que andaram contemplando a Lua branca e fria…
Levantai-vos, heróis, e despertai, gigantes!
Já canta pelo azul sereno a cotovia
E já rasga o arado as terras fumegantes…

Entra-nos pelo peito em borbotões joviais
Este sangue de luz que a madrugada entorna!
Poetas, que somos nós? Ferreiros d’arsenais;
E bater, é bater com alma na bigorna
As estrofes de bronze, as lanças e os punhais.

Acendei a fornalha enorme — a Inspiração.
Dai-lhe lenha — A Verdade, a Justiça, o Direito —
E harmonia e pureza, e febre, e indignação;
E p’ra que a labareda irrompa, abri o peito
E atirai ao braseiro, ardendo, o coração!

Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio; embora!
O poeta é como o Sol: o fogo que ele encerra
É quem espalha a luz nessa amplidão sonora…
Queimemo-nos a nós, iluminando a Terra!
Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!

‘Poesias Dispersas’ (1912)

Após a implantação da República, estando, na altura que o antecedeu, numa quinta na zona do Douro, tornou-se enviado extraordinário como diplomata na Suíça, nomeadamente na cidade de Berna, onde esteve quatro anos. O seu papel era, desde já, louvado, recebendo uma homenagem em 1911, na própria cidade do Porto. De seguida, estaria em Barca de Alva, a cuidar da quinta acima mencionada. A sua morte viria pouco depois, numa fase de inconsistência política, no dia 7 de julho de 1923, em Lisboa. Em 1963, o seu corpo foi trasladado do Mosteiro dos Jerónimos, onde se encontrava, para o Panteão Nacional.

A sua poesia foi elogiado por diversos contemporâneos, tais como Eça de Queirós, e os também autores e pensadores Sampaio Bruno, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes, tendo o segundo comparado a obra “Pátria” (1896, onde exultou as glórias nacionais, e desprezou o estado no qual se encontrava Portugal) aos “Os Lusíadas” camonianos. Em termos temáticos e conceptuais, e ao contrário das questões normalmente líricas e sentimentais, Junqueiro incide em assuntos sociais e morais, criticando as prerrogativas clericais e burguesas, e os seus posicionamentos numa fase bastante conturbada da atualidade portuguesa. Tendo em conta o contexto temporal da sua obra, assume-se como um dos mais acérrimos críticos do crescente estado decadente das expressões e fundações nacionais. Todavia, incentivava dar uma resposta forte e afirmativa à crise identitária do país, a partir de uma reestruturação moral dos principais representantes da nação, para além de todo o povo. Essa exortação não deixava, contudo, de deter um pendor romantista e apaixonado, para além de um sentido satírico e confidencial. Ainda antes de se voltar totalmente para a terra, deu dispersão à sua mundanidade poética, simplificando as direções da sua poesia, e alimentando-o com um certo saudosismo da calmaria de outrora, para além da ternura e da própria metafísica da existência telúrica. Exemplos desta tendência permanecem nos anos 1890, com “Os Simples” (1892).

Quando a alma, ao termo de mil hesitações e desenganos, cravou as raízes para sempre num ideal de amor e de verdade, podem calcá-la e torturá-la, podem-na ferir e ensanguentar, que quanto mais a calcam, mais ela penetra no seio ardente que deseja.

Guerra Junqueiro foi um dos nomes mais marcantes na viragem do século XIX para o XX, tornando-se politica e literariamente influente dentro e fora de portas. Mais do que poeta, era um orador dos seus ideais, das suas opiniões, das suas ambições, das suas posições. Letrado e viajado, contou com a experiência para lhe conferir legitimidade e realidade às viagens poéticas que orquestrou. A sua obra foi traduzida em vários idiomas proeminentes do “Velho Continente”, estando incluindo em críticas e apreciações internacionais, tanto de fontes literárias como científicas. Tudo com vista a renovar a sociedade, os seus diferentes pertencentes, e, num ponto mais maduro da sua vida lírica, a si mesmo. Desta feita, Junqueiro foi voz e sentimento de um Portugal necessitado de um novo rumo de discernimento.

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