A generosidade genial do pianista Grigory Sokolov
“Deus, que triste o sangue dos corpos ao fundo do som.”, Georges Bataille, em O Pequeno, Edições Sr Teste, 2020, p. 34.
Há ainda muito de humano nos seres humanos! A música não é somente a arte dos sons e do seu equilíbrio formal. Não é apenas matemática e rigor métrico. É poética que torna dizível o Indizível! A música é a arte de fazer nascer de novo. Quem teve o privilégio de escutar recentemente o pianista russo Grigory Sokolov, “poeta do indizível” (Julian Sykes), na Casa da Música, sabe o que significa o poder da generosidade genial de sua presença minimal. Seduziu por inteiro o auditório ali presente, aliando o rigor técnico à abertura para o espanto, para a atendibilidade de um mistério mais fundo que o seu estilo musical deixa apenas entrever.
Para além da interpretação límpida, expressiva e sensível do programa anunciado, as Quatro Polonaises, de Chopin, e os 10 Prelúdios, op. 23, de Rachmaninoff, foi sobretudo a sua entrega absoluta ao piano, e no final, ao público, a ponto de prolongar por mais meia hora este simpósio místico memorável. Sokolov, pianista de craveira mundial, acedeu por cinco vezes, diante do aplauso interminável do público, voltar ao palco cénico, e brindar-nos com cinco peças não previstas no programa, pequenos fragmentos ou prolongamentos infinitos do tempo finito. Esta fruição ou desejo da autenticidade de uma presença sem palavra é o esplendor do fascínio na arte visual ou sonora.
É um gesto inaugural que este pianista de génio generoso nos concede. Ele sabe quão frágeis os humanos se sentem hoje, e através do seu dom, porque o tem em excesso, dá-o, partilha-o, na penumbra da mínima gestualidade sem artifícios, sem nada pedir em troca, senão o respeito e a mesma generosidade de outrem, o silêncio onírico dos comensais que ali se reuniram para o banquete/simpósio musical. O pianista deu o seu corpo e entregou-se por completo à arte do sentido, ousando mesmo ir mais além das regras estabelecidas, do protocolo clássico, para proporcionar uma breve, mas fortíssima emoção, um sentimento de existência, que dá intensidade ao que somos ou desejamos vir a ser. O instante do momento projecta-nos no devir. Esta entrega em “carne e osso” é também o sinal de que os humanos se podem amar, que podem construir algo juntos, apesar das singularidades inerentes a cada ser. Há cometas que brilham a anos luz pela sua humildade, por essa capacidade inata de doar o melhor de si, para proporcionar aos outros uma pequena alegria, um sentimento de que é possível recomeçar, não obstante as incertezas existenciais.
Escutar Sokolov não é um luxo. É um acto de manducação espiritual, de nutrimento da vida do espírito, para que o corpo não soçobre aos mecanismos da fadiga do mundo moderno. A arte poderá resgatar o humano do seu abismo se ela não for aristocrata ou burguesa, se for capaz de elevar todos os humanos a novas possibilidades de uma vida possível comum. As mãos pensantes de Sokolov tornaram ali presentes Chopin e a Rachmaninoff, como nossos contemporâneos. A arte não é nem poder ser propriedade de uma pequena elite endinheirada, que consome arte porque tem poder para o fazer ou porque dá um certo estatuto social. A arte é um bem espiritual para todos os humanos, pobres ou ricos, favorecidos ou desfavorecidos, capaz de nos resgatar das zonas mais sombrias, capaz de animar os humanos que vivem em lugares existenciais desfavorecidos ou sem acesso à cultura. Sem essa generosidade pelo humano, a arte prostitui-se e torna-se exclusivista, em contradição com a sua própria génese ou origem que, na maioria dos casos, brota de criadores assombrados pela degradação e pela marginalização epocal.
Na verdade, qual é o poder inebriante da arte? O que pode a arte em tempos de escombros? Não poderá muito, mas pode ajudar-nos a aprender a ver o mundo de um outro modo. Neste caso, mais do que as capacidades técnicas, o sentimento de generosidade de um homem, desnudado, em intimidade erótica com o seu piano, envolvido por outros humanos que o escutam e são contaminados por uma atmosfera ou ambiência de extrema sobriedade e despojamento. Há aqui uma experiência interior que não precisa de palavras para ser explicada, apenas silêncio musical, e presença de uns aos outros nesse mesmo silêncio corporal. Fenómeno paradoxal este: não é o pianista que atrai a nossa atenção, é o invisível que move e comove a nossa atenção, para o mistério que o visível descobre. É este fascínio de tornar visível o invisível – o sentimento de existência –, sentir-se vivente, para além dos limites impostos pelas regras musicais, pela situação ou pelo lugar, que o estilo de Sokolov nos abre para uma outra habitação do tempo e do espaço.
Neste êxtase de glória sente-se a “presença profundamente ausente”, ou como diz o poeta palestinense Mahmoud Darwich, “na Presença da Ausência”, no Ser mais fundo que nos habita e nos faz desejar ser uns para os outros, “na hospitalidade da esperança”. E então, como escreve George Bataille, a arte torna-se evocação de um vivido significativo: «O lugar onde conheci o êxtase anteriormente, a memória enfeitiçada de sensações físicas, o ambiente banal do qual guardei uma memória exacta têm uma potência evocadora maior do que a repetição voluntária de um movimento de espírito descritível.» (A Experiência Interior, Edições 70, Lisboa, 2021, p. 89).
É na “brecha escancarada” (o lugar, a memória enfeitiçada, o ambiente banal, o onírico, o pueril, o sonho, a angústia, a perda…) que a verdadeira arte abre em nós, como deiscência da carne, que se dá a passagem, a comunicação entre os humanos, e possivelmente, para quem é crente, a relação com a divindade encarnada no centro do ser mais profundo. E isto acontece, porque Sokolov, e com ele o público ali presente, como numa liturgia bela e justa, tomaram consciência do seu outro, lançando-se fora de si, abismando-se numa multidão sequiosa após longa e penosa e infinda travessia do deserto pandémico. E novamente Bataille, agora sob o modo de interrogação, como questionamento vital que nos trespassa a todos, artistas ou não: «Deveria renunciar a sair de mim, permanecer encerrado neste eu como no fundo de um túmulo?» (A Experiência Interior, Edições 70, Lisboa, 2021, p. 90).
A palavra é demasiado preciosa para a desbaratamos a “desmodo” e a “destempo”; ela é a nossa melhor arma, que o silêncio descobre e intensifica. É como o arrebatamento do último batimento de Sokolov, na Polonaise em Fá sustenido menor, op. 44, que nos sidera, imóvel, numa turbulência de pensamentos, êxtase do instante, “compungência” contida, visita inesperada de um «deus» oculto, a alegria e a leveza do vislumbre de um Rosto em chamas… A ilusão de escapar ao tempo, de aceder ao eterno naquele instante…E depois, de seguida, o batimento/rebentamento profundo cujo eco se prolonga interminavelmente no corpo… A palavra só pode ser isso, rebentamento magmático, não obstante, as solicitações a que somos chamados, à presença inadiável no mundo, o linguajar ritual quotidiano emaranhado de séculos. Viveremos o tempo da “morte da palavra” que a imagem comercial pulveriza até à exaustão? E todavia, subsistem as imagens visuais ou poéticas que a palavra no seu desvelo pode recriar. A profusão de imagens musicais ou “ideias sensíveis” (Proust) a indiciar o conceito e o pensamento.Só a generosidade límpida e pueril que se interroga diante do apelo incessante do outro pode dar-nos a promessa de um tempo novo a refazer…, mesmo sabendo que para ninguém a Terra prometida está “à mão de semear” – a inelutável presença da morte no-lo diz. «A experiência da morte faz vacilar o interesse anquiloso por si mesmo», diz-nos Byung-Chul Han em Rostos da Morte. Investigações Filosóficas sobre a Morte, Relógio d’Água, Lisboa, 2021, p. 20. E por isso as artes de sentido estão aí, não para a ilusão desse momento dramático, mas para intensificar os tempos da vida de um ipse obscurecido, as pequenas coisas de cada instante, a deiscência interior do si mesmo à presença carnal de um outro ser. Génios há bastantes, mas génios generosos, não haverá assim tantos, que nos levam a atravessar risivelmente o abismo do vácuo desta “festa da insignificância” (Kundera) que é, por vezes, a vida insana do mundo.
Artigo de Paul Séguy