La Vie en uma caixa de supermercado
Como ávido e experiente caixa de supermercado, creio que esteja na posição ideal para afirmar que as pessoas tendem a falhar redondamente quando tentam opinar sobre o que acreditam ser o pior aspeto do meu trabalho.
Não Márcio, não é o facto de trabalhar no atendimento ao público e de cerca de 87,8% da população (de acordo com os últimos censos claro), ser idiota. E não, também não é o facto de receber o que equivale ao salário de um escravo da Zâmbia. O pior que o meu trabalho tem para oferecer, é o soturno momento em que, após atender um bando de aristocratas que me sai do estabelecimento com dois carrinhos cheios de presunto de porco bísaro, me deparo com um miúdo reticente, no fim da fila, com um pacotinho de arroz basmati e uma garrafinha de 33cl da marca sol. Afirmo perante vós, que não existe nenhum Ser Humano capaz de lidar com este entrave com total impassividade.
Os artigos que compramos num supermercado acabam por dizer muito sobre nós. Mas como para todas as regras existe uma exceção, esta não será diferente. A esta exceção eu chamei “os indecifráveis”.
Nada mais certo do que encontrar mitras na secção das bebidas energéticas ou perto de vinho do pacote. Há 100% de chance de ver os vegetarianos a dar cambalhotas em cima de couve-flor. É impossível não encontrar os meus colegas de trabalho no corredor dos antidepressivos. Mas há um mísero grupo de células em formato de pessoa que tendo a ter dificuldades em classificar — os indecifráveis.
Estou a falar daquelas “pessoas” que chegam até mim com uns bifinhos de frango, uma forma para bolos, um saquito de dedos goma, um aromatizador da Air Wick e uns chinelos de praia com a bandeira de Portugal. Esta compra peca tanto em termos de diretriz que tenho dificuldades em concluir se tenho perante mim uma freira que se encontra em clausura no Convento de Mafra ou um mecânico de Fafe.
Mas nem tudo é mau neste meu nobre trabalho, desenvolvi uma grande quantidade de skills que julgava estarem aquém da minha capacidade cognitiva. O meu riso falso, por exemplo, já elogiado por Nuno Melo (cliente habitual), está ao nível dos melhores da Península Ibérica. Sinto que estou a um passo de saltar do supermercado para a passadeira vermelha. Afirmo com uma certa veemência que ainda me vão ver de smoking a acenar ao lado da Iva Domingues. Estar apto para conversar com idosos. Conversas com indivíduos senis são basicamente um novo dialeto, o que não se apresenta como óbice, uma vez que sou poliglota. O recurso a provérbios ou expressões tradicionais, a menção ao todo supremo ser omnipotente em que não acredito, a alusão à meteorologia e o lamuriar de falta de saúde são todos tópicos que domino com uma certa desenvoltura. Trocando isto por miúdos, as velhas adoram-me.
Esta temporada laboral tem mesmo tido os seus lados positivos, permite-me acarretar os custos de todo o álcool que consumo no bairro alto e dá-me uma certa liberdade financeira desejada por qualquer adolescente. No outro dia, por exemplo, fui comprar meias sozinho à La Redoute, com o meu dinheiro!
Enfim, sinto-me a transitar para a vida adulta.
Crónica de Tomás Silva
O Tomás é estudante de Comunicação e Jornalismo.