Dante e a neutralidade
Em 1964, Robert Kennedy, o meu preferido de todos os Kennedys, tão assombrado como todos eles e mais elegante que todos os outros, explicava que a citação preferida do irmão John, o Kennedy Presidente, era uma habitualmente atribuída a Dante: “os lugares mais quentes do Inferno estão reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise”.
A frase, na verdade, não consta ipsis verbis do trabalho de Dante, mas parece seguro afirmar que é nele que se inspira. Importa atentar na explicação. O lugar dos “neutros” não era só o mais quente do Inferno, era o lugar dos duplamente rejeitados, daqueles que eram tão repugnantes que eram igualmente rejeitados por Deus e por Satanás.
As composições de Dante não foram feitas numa Europa sob União, embora Dante tenha tecido considerações sobre o fenómeno; mas têm a virtualidade dos ensinamentos dos grandes textos, a atemporalidade.
Nesse sentido, importa não esquecer estes ensinamentos para analisar a decisão do Governo português de não assinar uma carta aberta dirigida ao Governo da Hungria a condenar a proibição da divulgação de conteúdo sobre a comunidade LGBT junto de menores.
Justifica a Secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, que a não inclusão de Portugal se deve ao facto de o nosso país presidir momentaneamente à Presidência do Conselho da União Europeia (UE), o que exigiria um suposto “dever de neutralidade” para garantia das conduções dos trabalhos.
Começa por ser relevante referir que as Presidências rotativas do Conselho da UE não servem para meros expedientes procedimentais, isto é, cada trio de presidências elabora um conjunto de prioridades sobre as quais o Conselho trabalhará durante a sua égide. Curiosamente, uma das prioridades da Presidência Portuguesa é a “promoção de oportunidades iguais e o combate a todas as formas de discriminação”.
Desse modo, a visão de que incumbia apenas a Portugal um mero dever de gestão dos trabalhos é desfasada da realidade e do espírito das Presidências do Conselho da UE. Olhemos ao acordo sobre a Diretiva Divulgação Pública de Informações por País, a chamada Diretiva CBCR, parada há 5 anos, isto para nomear apenas um dos trabalhos que, apenas com neutralidade e gestão procedimental, nunca teria visto a luz do dia durante a Presidência Portuguesa.
As Presidências do Conselho da UE vivem da procura de compromissos e da concretização de ações que sejam condizentes com os princípios da União, o que, não raras vezes, faz com que a neutralidade seja um empecilho ou uma esterilidade.
Mas vamos agora assumir que o dever de neutralidade é um pressuposto que se verifica como obrigação. Sobre esse aspeto há duas considerações essenciais.
Uma primeira que gerou um interessante debate sobre a pertinência destas Presidências num cenário em que tal significaria o sacrifício prévio das posições de um Estado-Membro. A discussão é interessante, mas para o caso concreto é meramente académica, porque parte do princípio de que todas as opções em cima da mesa são aceitáveis.
No caso concreto, o lugar à mesa (a adesão na UE) vem à custa — e bem — do respeito por um conjunto de princípios elencados no artigo 2.º do Tratado da União Europeia. Pelo que, quando se trata de uma matéria que contende com as mais básicas regras da mesa, o sacrifício da posição é uma afronta aberta à própria mesa, a mesma que os deveres processuais juram defender.
A segunda consideração contende com uma posição deixada expressa pelos nossos governantes: de que a repulsa de Portugal pela lei é total e que a não subscrição se fica a dever a uma mera circunstância da Presidência do Conselho da EU.
Pois bem, a nossa Presidência do Conselho termina no próximo dia 30 de junho, terminando com ela o “dever de neutralidade”. Se Portugal quer ser condizente com a sua posição de fundo, então tem à sua disposição o artigo 259.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia que permite que qualquer Estado-Membro recorra ao Tribunal de Justiça da União Europeia quando considera que um outro violou as obrigações que decorrem dos tratados.
Esta ação não remendaria o erro, mas esclareceria o posicionamento de fundo do país. Se tal não for feito, vamos continuar a ser os neutros que, por omissão, vão à bola com Órban. E aí podemos esperar o sítio sobre o qual Dante escrevia e de que os Kennedys falavam.
Crónica de Tiago Cunha
O Tiago estuda Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto é socialista, republicano, laico e portista.