A música é uma história que nos salva!
“Há 21 anos não se falava de solidão, muito menos dos mais velhos”. Foi com esta frase que a Rosa abriu a nossa conversa, não imaginando talvez que essa frase viria a habitar-me a memória e o espírito nos dias que se seguiram até hoje. A Rosa é uma das responsáveis pela “Coração Amarelo”, uma associação nascida no ano 2000, com uma missão que me agradaria classificar como poética! Sete amigas que decidem juntar-se para combater a solidão dos mais velhos, fazer companhia, doar tempo, essa espécie de energia renovável que, no entanto, parece tender continuamente para a extinção.
Tudo parece reger-se pela batuta ansiosa da pressa (tantas vezes comprada por eficiência). É preciso criar coisas que se possam enumerar, quantificar, classificar em poucas palavras. O velho adágio “depressa e bem não há quem” perdeu apoiantes para dar lugar ao alegrissimo: “tempo é dinheiro”!
Trabalhei 15 anos num hospital central de Lisboa como enfermeira. A maioria dos “meus doentes” eram pessoas de idade avançada e, não raras vezes me embrenhei nas suas estórias, tantas delas contadas a partir desse lugar de solidão. A solidão efectiva, pelas mais diversas razões, e a solidão de quem vivia num espaço que já não era seu, onde já não tinha voz e já nada se relacionava com a sua identidade. E os contactos iam-se desumanizando e resumindo ao cumprimento mecânico de tarefas e actividades puramente prosaicas e impessoais.
Devo estar a ficar velho (…) Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos polares. (in “A Velhice”; Lobo Antunes, António – Livro de Crónicas)
Lobo Antunes é mestre nesta descrição tão espirituosa quanto realista da velhice. O sentido de humor é quase sempre ferramenta aguçada frente à adversidade, mas há que ser hábil no seu manejo sob pena de se tornar inoportuno. É então que me lembro sempre da música, da sua absoluta capacidade de permear as paredes mais grossas da solidão, de ocupar espaços, de recuperar memórias. Não será isto uma espécie de “fazer companhia”, de se sentar ao nosso lado no sofá da sala? A música tem de facto o poder de humanizar os lugares por onde passa, é quase uma linguagem universal.
Canto desde que me entendo como gente. Em minha casa sempre se cantou, todos cantavam. Muitas vezes enquanto enfermeira era a música a pílula mágica contra os momentos de angústia, desesperança ou tédio simplesmente; a canção cantada em dueto com a senhora da cama 7, a visita dos estudantes-músicos na altura do Natal, os auscultadores nos ouvidos da senhora mais calada com os temas preferidos da sua juventude…
Por outro lado, enquanto eu própria dividia o tempo entre o hospital e as canções, dois cenários aparentemente tão díspares, tornava-me eu própria quase inconscientemente numa enfermeira de espírito mais expansivo e numa cantora com cada vez mais estórias para c(a)ontar. A música e os seus caminhos abrem portadas que ampliam competências e o entendimento da nossa identidade pessoal e colectiva, cultural e social, mesmo em contextos que pareceriam menos propícios.
Ela [a música] está completamente separada de todas as outras [artes]. (…) ela é uma arte tão grandiosa e majestosa, atua tão vigorosamente sobre o mais íntimo do Homem, é tão completa e profundamente entendida por ele como se fosse uma linguagem universal cuja clareza supera até mesmo a do mundo intuitivo. (in “Metafísica do Belo”; Schopenhauer)
A quem restem dúvidas sobre esta função quase medicinal da música de resgatar a nossa humanidade, recomendaria um filme-documentário americano premiado no Sundance Film Festival em 2014: Alive Inside que retrata histórias reais dos benefícios operados pela música em pessoas com doenças degenerativas do sistema nervoso central que deterioram a memória. São relatos absolutamente impressionantes de como a música despertou algures memórias perdidas que, quando reavivadas, trouxeram consigo um pouco do tecido da identidade, das paixões, da história daquela pessoa que se dava muitas vezes como “perdida” enquanto ser social e até para a própria família.
Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito.
Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou. (in A Velhice; Lobo Antunes – Livro de Crónicas)
Às vezes, lutar contra a solidão de alguém pode ser só lembrar-lhe de quem é…e daquela música…aquela…essa mesma!
A música é uma história que nos salva.
Crónica de Cristina Clara.
A Cristina divide-se entre a enfermagem e a música.