“Dune”, de Denis Villeneuve: a obra prima épica do cinema moderno
Filme visto na estreia em Estocolmo, Suécia, no dia 15 de Setembro de 2021. Este artigo pode conter spoilers.
Nascidos no mesmo mês, mas com 47 anos de diferença, Frank Herbert e Denis Villeneuve vão ficar ligados para sempre, um como um dos maiores escritores daquele que é considerado por muitos como o melhor livro de ficção científica da história, outro como o realizador que transformou essa obra num dos melhores filmes de ficção científica de sempre.
O realizador canadiano começou a sua carreira, sem surpresas, no Canadá, com algumas curtas metragens com destaque local. Do seu primeiro filme (August 32nd on Earth, 1998) até ao sucesso internacional foram uns meros anos. Incendies (2010) valeu-lhe a sua primeira nomeação para um Óscar, mas os seus dois filmes anteriores, Polytechnique (2009) e Maelström já lhe tinham valido vários prémios e reconhecimento internacional no segmento de cineasta/autor mais independente. Contudo, foi com Prisoners (2013) que Villeneuve atingiu verdadeiramente o sucesso comercial, e daí para a frente é o que se sabe, sucesso com todos os seus filmes e uma identidade cada vez mais coesa no mundo do cinema comercial e cada vez mais “blockbuster”.
Após o sucesso ambíguo de Blade Runner 2049, Villeneuve pegou na maior obra literária de ficção cientifica e vestiu-lhe as suas roupas. Dune, de Denis Villeneuve, é o maior épico da história do cinema em muitos, muitos anos, e provavelmente o melhor filme de ficção científica desde Terminator 2 (1991). Cada cena, cada momento, cada diálogo, é elevado ao expoente máximo do que um épico representa, com uma banda sonora monstruosa (no melhor sentido da palavra) de Hans Zimmer e uma realização soberba de Villeneuve.
Se David Lynch falhou na adaptação da obra de Frank Herbert em 1984 e Alejandro Jodorowsky nunca chegou a ter uma verdadeira oportunidade, Villeneuve sucede ao máximo em todos os aspectos. A solidez de Dune é impressionante no cinema actual, principalmente num universo cada vez mais dominado pelo “copy paste” da Marvel ou DC. Existem explosões, drama, intensidade, tudo criado ao ínfimo detalhe. Denis Villeneuve pegou em tudo aquilo que aprendeu nos seus filmes anteriores e elevou-se a um novo patamar, o de lenda.
Começando pelos cenários, adereços e vestuário, Dune é arrepiante. O detalhe em cada canto do palácio de Atreides ou Harkonnen é digno dos tempos de Cleopatra como rainha do Egipto (curiosamente o próximo filme de Villeneuve). Existe indiscutivelmente uma clara influência de Blade Runner 2049 no que toca a interiores. O palácio de Atreides e muitas localizações interiores em Arrakis são um espelho optimizado do edifício fantasmagórico de Niander Wallace em Blade Runner 2049. E se em Blade Runner todos esses aspectos já estavam bastante aperfeiçoados, em Dune o patamar é claramente superior. Os fatos de cada personagem são um trabalho perfeito de estudo da obra de Herbert, mas também de uma grande criatividade. Olhando especificamente para todo o universo dos Harkonnen, ficamos facilmente de boca aberta com todos os adereços e detalhes em redor dos personagens.
Falando especificamente do CGI, estamos perante provavelmente o melhor uso de sempre desta tecnologia (a par de Mandalorian) e a razão para isso é simples: Villeneuve é um autor e não um realizador de linha de montagem. Além de usar a melhor tecnologia de CGI, Villeneuve sabe como filmar para tirar o melhor potencial da mesma. Há muitos planos abertos, em que o personagem se funde totalmente com o cenário, criando uma ilusão de tudo aquilo que vemos é real. A fotografia, desta vez a cargo de Greig Fraser (The Mandalorian, curiosamente) ao invés do habitual parceiro Roger Deakins, é de louvar. Não há duvidas, estamos perante um dos melhores filmes de ficção cientifica de sempre do ponto de vista visual.
Contudo, por baixo de toda esta imponência visual há também muito conteúdo. Não existe apenas um “copy paste” do argumento do livro original, mas sim uma adaptação energética e absorvente. Todos os actores estão a um nível excelente, principalmente Rebeca Ferguson, que rouba completamente o “show”. Timothée Chalamet foi uma escolha excelente para personificar o famoso Paul Atreides e Oscar Isaac e Josh Brolin estão também perfeitos como Leto Atreides e Gurney, respectivamente. Destaque também para Stellan Skarsgård como Baron Harkonnen, que com poucos minutos durante todo o filme consegue assombrar-nos durante muito mais tempo do que aquele que realmente está em cena. Zendaya tem muito menos tempo em cena do que provavelmente toda a gente queria, mas é expectável, já que o filme termina praticamente no momento em que Paul e Jessica encontram os Fremen no deserto de Arrakis. Há que dar também destaque a Bautista e Jason Momoa, embora o primeiro apareça muito menos, mas não há dúvida que são dois dos maiores nomes do cinema de acção de qualidade, representando ao mais alto nível.
Outro aspecto sempre de destaque nos filmes de Villeneuve é a banda sonora e o som. E aqui está uma das razões pela qual é relevante ver este filme no cinema. Por melhor que seja o nosso sistema de som em casa, por maior que seja a TV, nada consegue igualar uma sala de cinema. Cada passo dos personagens é sentido com grande impacto, cada suspiro é intenso e cada fala é pessoal. Villeneuve atingiu o topo no que toca a todos os aspectos técnicos, e com Dune atingiu também o topo no que toca a argumento e coesão narrativa, algo que já tinha sido bem executado em Blade Runner 2049. Hans Zimmer é um dos maiores nomes da música no que toca a bandas sonoras de Hollywood. Se é difícil para um génio continuar a criar obras sempre com boa qualidade, mais difícil é ainda inovar e ir mais além, e isso foi algo que Zimmer conseguiu fazer com Dune. Esta banda sonora é de uma intensidade única, com músicas soberbas, mas com um trabalho de som de excelência. Tal como as grandes obras da ficção cientifica anteriores (2001: Odisseia no Espaço e Star Wars), Dune beneficia muito do facto de ter uma excelente banda sonora e alguém como Lee Gilmore (Blade Runner 2049, Zero Dark Thirty, Fury) no departamento do som.
Há pouca coisa negativa a apontar num filme desta qualidade. Podemos argumentar que o filme termina num momento algo estranho, mas seria difícil termina-lo “bem”, tendo em conta que irá existir uma segunda parte. O personagem de Baron Harkonnen tem também pouco tempo de antena e pouco tempo para ser desenvolvido como vilão, mas isso não é particularmente um problema tendo em conta a caracterização do mesmo, talvez o seja para quem não conhece o universo de Dune. E este é um detalhe que Villeneuve continua a fazer sem emendar: Se em Blade Runner 2049 muitos criticaram o facto do personagem de Jared Leto, o suposto vilão do filme, ter muito pouco tempo em cena, em Dune acontece praticamente o mesmo, o vilão do filme não tem muito tempo no ecrã. Esta escolha não é propriamente negativa e em Dune não afecta muito a narrativa, mas é uma escolha que pode não agradar aos fãs de filmes da Marvel, que estão habituados a confrontos de 1h30 entre os “bons e os maus”.
Tal como Peter Jackson com Lord of The Rings, George Lucas com Star Wars e James Cameron com Terminator, Villeneuve consegue criar uma obra única na história do cinema, onde reflecte toda a sua identidade, mas potencia também todo o trabalho da sua equipa, desde banda sonora a representações, aspectos cénicos, cinematografia ou montagem. Dune é, sem qualquer dúvida, uma das maiores obras da ficção científica da história do cinema. Villeneuve pegou nas suas melhores qualidades, numa das maiores obras da literatura e elevou tudo isso a um patamar onde só os grandes nomes do cinema se encontram. Ficamos ansiosamente à espera da segunda parte e curiosamente à espera de ver como Villeneuve irá, ou não, inovar uma vez mais.