As frentes de combate e de arte de Odete Santos
“E eu pergunto aos economistas, políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”, declamou Odete Santos, citando o escritor Almeida Garret, na sua última intervenção como dirigente do Comité Central do PCP, em 2012.
Maria Odete dos Santos nasceu a 26 de abril de 1941 na pequena freguesia de Pega, situada no distrito da Guarda. Nos anos que se seguiriam, esperava-se uma vida repleta de lutas e de frentes de batalha, que implicariam uma autêntica omnipresença. Seja na advocacia, seja na política, Odete Santos pautou-se por um conjunto de valores que, embora com a bandeira comunista, nunca deixou de ser muito próprio e identitário. Como uma das primeiras parlamentares no feminino do período democrático no pós-25 de abril, tornou-se ainda mais relevante pela valorização e dignificação de todas as mulheres que sentiu representar e por quem, tantas e tantas vezes, deu a cara, o pensamento e o coração. Por mais agruras pessoais e políticas que lhe afligissem (entre elas, a perda de um filho com 16 anos), foram efemérides que fizeram dela ainda mais mulher. Forte, aguerrida e robusta.
Filha de professores do ensino primário num seio conservador e relativamente católico (mais do lado da mãe), foi com os pais para a cidade de Setúbal nos seus dez anos de idade e, após hesitar entre Direito e História, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, da qual se fez advogada. O curso foi uma opção feita por uma então jovem que, por força da sua rebeldia, se sentia capaz nas discussões e debates que tinha no seu percurso escolar. Não obstante, sentiu-se defraudada com o curso, já que se sentia fatigada pela bagagem de conceitos e pela pouca prática. Foi nesta cidade sadina que exerceu a profissão, pela qual foi ganhando gosto, sendo que, muitas vezes, em regime pro bono, não cobrando nada pelos serviços prestados à comunidade. Com isto, vingava-se da nega que levara do governo quando procurou tornar-se funcionária pública. No entanto, foi também como atriz — embora amadora — que encontrou uma das suas realizações pessoais, em especial no Teatro Amador de Setúbal (TAS) e no Maria Vitória, já em Lisboa. Uma das peças que ficaria conhecida pelo seu contributo seria, precisamente neste último recinto, a revista “Arre Potter Qu’é Demais”(2003).
Apesar de advogada, Odete Santos aceitou o repto do Partido Comunista — pelo qual já se havia afeiçoado durante a sua vida académica — e assumiu as funções de deputada, pelo círculo do distrito de Setúbal. Nesse período turbulento da crise académica, a então estudante procurou estar consciente e presente em relação às iniciativas grevistas que iam surgindo nesse iniciar da década de 1960, para além de se ir envolvendo nos habituais movimentos estudantis. A atitude de desenraizamento que sentia e que a tornou alguém mais cerrada e coriácea não a impediu, porém, de começar a assumir posições bem convictas e vigorosas, que faziam antever o exercício das suas funções profissionais. A ligação ao partido arrefeceria um pouco depois de concluir a sua formação, mas regressaria em força já após a Revolução de Abril.
Desta feita, e voltando ao percurso político per se, tudo começou na II Legislatura, em 1980, e seguiu-se até 2006, num período que quase alcançou os vinte e sete anos. No meio desse percurso, seria agraciada com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, no ano de 1998. Também seria, em várias ocasiões (2001 e 2009), presidente da Assembleia Municipal de Setúbal, distrito que se lhe tornou muito próximo nas causas e nas lutas, já que também dirigiu a Organização Regional do distrito. Setúbal fez sempre parte dos seus projetos políticos, já que tinha sido vereadora no pelouro da cultura logo em 1974 até ao ano de 1976, passando para a assembleia municipal pouco tempo depois. Nos quadros do partido, assumiu funções no seu Comité Central, de 2000 a 2012 e, apesar da ligação partidária convicta, nunca deixou de ser considerada em praça pública, como uma voz fundamental e marcante nas conquistas das mulheres no âmbito da sua dignificação em sede de trabalho e perante a lei como um todo.
Como uma das primeiras mulheres na política portuguesa no pós-25 de abril, fez parte do primeiro Conselho Nacional do Movimento Democrático de Mulheres, em 1980, que procurava encontrar respostas para as suas reivindicações sociais e salariais, apelando à igualdade de direitos e de condições laborais entre si e os homens e à alfabetização das mulheres, o que incentivaria a sua procura por trabalhos mais dignos e qualificados. Também por isso dispensava muitas das mulheres que defendia na sua profissão, desde indivíduas carenciadas e em situações delicadas, desencadeadas por força de divórcios, abortos e outras contendas laborais e sociais, marcadas pela discriminação sexual. Foi uma postura, aliás, que assumiria no seu percurso político, sempre com um forte tom contestatário e oposicionista, embora não antítese de um discurso construtivo e útil. Exemplo teórico desta postura é a obra “A Bruxa Hipátia – O Cérebro Tem Sexo?” (2010), que procura desmistificar muitos dos mitos entranhados na sociedade civil sobre as mulheres.
Como base, os valores garantidos e prometidos nesse abril de 1974, com a dignidade humana e feminina em lugar de destaque e de salvaguarda. Por isso é que, na atividade parlamentar que desempenhou, assumiu funções em várias Comissões, como a de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a de Saúde e também a Subcomissão de Justiça e Assuntos Prisionais. Nesse âmbito, formalizou e propôs vária da legislação que procurava assegurar direitos fundamentais das mulheres, em especial nos contextos de trabalho, para além dos casos de violência doméstica e de interrupção voluntária de gravidez, para além da própria procriação medicamente assistida. De igual modo, contribuiu para a fundação da associação Fronteiras, com o pendor de salvaguarda dos valores democráticos e da defesa da liberdade, sem descurar a necessidade de trazer e de envolver as gentes para a discussão e a atividade políticas.
Ainda no que toca ao campo da cultura, Odete Santos foi, também, autora da tragicomédia “Em Maio Há Cerejas” (2002, adaptada aos palcos) e da coleção de poesia “A Argamassa dos Poemas”, onde coligiu alguns dos seus prediletos autores deste género, como José Gomes Ferreira, Rafael Albertini e Manuel da Fonseca. Foi um percurso que conheceu o rasto pelo teatro já mencionado anteriormente, mas ao qual falta mencionar que se tratou de uma das partes fundadoras desse Teatro Amador de Setúbal. Aliás, seria um tubo de escape de um crescente descontentamento em relação à advocacia, mas também de um desgaste acrescido com a vida política vivida na primeira pessoa. Aliás, o teatro surge, precisamente, como uma espécie de calmante acessório, que lhe permitia o encarnar de personagens distintas e de sair da sua própria realidade. Uma das peças nas quais se destacou, entre adaptações de Gil Vicente e de Moliére, e ainda em regime amador, seria a adaptação do TAS de “Quem Tem Medo de Virginia Wolf”, escrita pelo dramaturgo norte-americano Edward Albee.
Odete Santos pugnou sempre pelo que considerou o bem, a felicidade da sociedade. Procurou batalhar o egoísmo social com abnegação e disponibilidade por dar a cara e a voz por muitos, numa fusão ideal entre indivíduo e coletivo, que garantisse uma liberdade de verdade. Liberdade essa sustentada num ideal de altruísmo e nos direitos fundamentais do ser humano. Com base nos ideais marxistas e comunistas, foi a autenticidade e a amplitude da sua voz que fizeram dela tão marcante e esfusiante em sede de Assembleia e de comício, de plateia e de rua. Filha adotada pela cidade de Setúbal, Odete Santos fez o Sado levantar ondas em prol dos seus.