Carta Aberta. As vidas das pessoas com deficiência estão dependentes de uma legislação luxuosa

por Cronista convidado,    13 Outubro, 2021
Carta Aberta. As vidas das pessoas com deficiência estão dependentes de uma legislação luxuosa

“Uma coisa que é fundamental é mudar a legislação sobre a habitação. A legislação Portuguesa é um luxo! É impossível fazer casas! Casas económicas. Tudo tem de ter 1.5m para os deficientes dar as voltas em cadeira de rodas. Mas quer dizer, nem todo o habitante Português tá numa cadeira de rodas. Se ele partir as pernas, ou não sei quê, muda para o terceiro esquerdo ou para o segundo direito, por aí fora. Portanto, toda essa legislação, as áreas e tudo, devem ser as melhores casas que há.”, afirmou o Arquiteto Souto Moura no programa “Primeira Pessoa”, da RTP1, que pode ser visto ao minuto 29:44 (aqui).

Carta Aberta da Associação CVI – Centro de Vida Independente:

“No passado dia 11 de outubro, na RTP, durante o programa “Primeira Pessoa”, o Sr. Arquiteto Souto Moura afirmou que “a legislação portuguesa é um luxo”, visto que obriga a que todas as casas cumpram determinadas medidas standard para que “os deficientes” possam “dar voltas em cadeira de rodas”.  

Aquilo a que o Sr. Arquiteto chama de luxo, nós, pessoas com deficiência, sabemos (por experiência) que é uma das principais formas de discriminação que enfrentamos no nosso quotidiano. A falta de acessibilidade é um dos maiores obstáculos à Vida Independente e à igualdade das pessoas com deficiência. A acessibilidade e o acesso à habitação não são um luxo! Tratam-se de direitos humanos fundamentais que devem ser garantidos a qualquer pessoa.

A legislação existe, precisamente, para não dar margem a possíveis atitudes discriminatórias como a que agora assistimos. A nossa vida não pode ficar dependente de decisões individuais de cada pessoa que constrói novas casas, achando que as pessoas com deficiência podem sempre recorrer a outras soluções. A lei que rege a sociedade pretende acautelar condições de igualdade entre todas as pessoas, defendendo os interesses de todos e todas, e não só de uma parte. 

As pessoas com deficiência, tal como o Sr. Arq., têm de poder escolher onde viver, quem visitar, em que condições, sem estarem constantemente impedidas de o fazer porque nunca são consideradas no momento de conceção das habitações, ou de qualquer outra estrutura da sociedade. 

Esta atitude seria expectável (nunca aceitável) por parte de um qualquer cidadão ou cidadã comuns, que não têm o conhecimento acerca da matéria em causa, ou a responsabilidade de uma figura de referência na área. Na verdade, opiniões semelhantes, sobre os mais diversos temas, são já habituais no nosso dia a dia. No entanto, sendo o Sr. Arquiteto Souto Moura vencedor de diversos prémios, com uma carreira notável, e com cargos ao nível da educação e da formação de novas gerações de profissionais, espera-se que tenha uma postura pedagógica, construtiva e com uma visão de sociedade inclusiva. 

Relativamente à RTP, sendo um canal público, exige-se, pelo menos, que não perpetue discursos discriminatórios, dando-lhes tempo de antena. Os meios de comunicação, como sabemos, têm um papel fundamental na forma como a sociedade interpreta os problemas, pelo que a responsabilidade de informar e educar é ainda mais importante quando se trata de direitos humanos. Tal como as habitações, não se pode fazer televisão apenas para uma parte da sociedade.

Aos restantes convidados e convidadas, assim como à apresentadora, levantam-se várias questões no que diz respeito à sua inércia. Tratar-se-á de conformismo social, perante uma afirmação feita por uma figura de relevo no tema? Ou será que é mais um sintoma da invisibilidade das pessoas com deficiência, que leva a que nunca pensem nas nossas vidas como sendo reais e dignas? Qualquer que seja a razão do seu silêncio, é tão grave como a voz de quem proferiu as afirmações em causa.

Resta-nos aguardar que nem todos os arquitetos e arquitetas do nosso país reproduzam este padrão segregador nas suas obras e que, de uma vez por todas, se abandone a ideia de que as pessoas com deficiência não precisam de aceder a todos os espaços. O lugar das pessoas com deficiência é em todo o lado! Se assim nos permitirem…

O Centro de Vida Independente continuará a trabalhar em prol de uma sociedade verdadeiramente justa e inclusiva, de forma ativa e construtiva e, sempre, sob o lema “nada sobre nós, sem nós!”. 

A acessibilidade não é um luxo, é direito humano!”

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