Festival MED: o primeiro dia da música do mundo em Loulé
O Festival MED, uma das referências da música do mundo em Portugal e na Europa, regressou ontem, dia 29 de Junho, para a sua 14ª edição. O centro histórico de Loulé voltou a preencher-se de música das diversas partes do globo, numa celebração da diversidade cultural, assente numa identidade já bastante bem definida de um festival que a cada ano ganha mais e mais reconhecimento. O primeiro dia do certame viu subir aos oito palcos do recinto artistas internacionais como Akua Naru, La Dame Blanche ou Teté Alhinho, assim como a prata da casa: Ana Moura, Celeste/Mariposa, Octa Push (que vieram substituir o argelino Rachid Taha, cancelamento de última hora) e Marta Ren e os seus Groovelets.
Chegamos ao recinto por altura do lusco-fusco, em que o entusiasmo já se faz sentir e os concertos nos três palcos principais (Matriz, Cerca e Castelo) começam a preparar-se. Cheira a comida deliciosa, e ranchos folclóricos animam os transeuntes que passeiam pelo emaranhado de ruas do centro histórico da cidade, decoradas a rigor com tecidos coloridos dependurados sobre as nossas cabeças, e pontilhadas com barraquinhas de artesanato ou produtos comestíveis.
Daniel Kemish abre as hostilidades no Palco Castelo, que, como o nome indica, fica mesmo ao lado do Castelo de Loulé, num pátio agradabilíssimo. Kemish, britânico radicado em Portugal, não é estranho ao MED – onde actuou, no ano passado, no bastante mais pequeno Palco Arco, animando a zona de comes e bebes. Desta vez apresentou-se com uma banda completa. A sua voz rouca – blues e country arraçados de rock – lembra-nos os Sean Riley and the Slowriders, banda que também se inspira no cancioneiro típico dos Estados Unidos. Soa honesto o suficiente, mas parecido a outras coisas, pelo que seguimos para algo mais exótico.
Teté Alhinho convida-nos a fazer uma “viagem pela música e alma” da sua terra, Cabo Verde. Focada maioritariamente no seu mais recente trabalho, Mornas ao Piano, o tradicional género cabo-verdiano surge aqui com uma plumagem de jazz, num registo cuidado que não deixa de evocar o calor das ilhas atlânticas. Teté dedica duas canções à sua mãe e, num momento especialmente enternecedor e feliz, convida cinco mulheres cabo-verdianas residentes em Loulé, pertencentes à Associação Esperança e Paz, a subir ao palco e juntar o seu batuque ao ritmo da bateria, que instiga o povo a dançar e a sorrir.
“Nós somos os Cloudleaf, de Loulé, e aquela é a minha mãe”, diz o baixista da banda referindo-se à senhora que entusiasticamente clama “só mais uma!”, antes de tocarem a última canção. Sente-se que o público no Palco Bica é constituído maioritariamente pelos intervenientes da cena alternativa louletana, amigos da banda, e o ambiente é fraterno. Lembra-nos que, apesar de este ser um festival que tenta concentrar o mundo em três dias, continua a ser marcadamente louletano, o que acaba por tornar a experiência mais intimista. A banda, com laivos dos momentos mais agitados de Explosions in the Sky, concentrados em comprimidos musicais de três ou quatro minutos, pode fazer ondas no panorama da música nacional.
Como esperado, o maior palco do festival, o Palco Matriz, revela-se pequeno demais para a grandiosidade de Ana Moura. O povo acotovela-se para ver um dos nomes maiores do fado contemporâneo – acabando depois por nem respeitar a célebre moção de “silêncio, que se vai cantar o fado”, infelizmente. A sua voz grave e poderosa faz-nos sentir abismados. Uma troca de indumentária demasiado longa retira algum ímpeto ao concerto, durante a qual a bastante competente banda se esforça para cobrir a ausência de Ana Moura, num entrelaçar de guitarra eléctrica, guitarra portuguesa, viola, bateria e teclas. Esperamos que ela regresse e despedimo-nos ao som de uma “Leva-me aos Fados” re-trabalhada; há outros caminhos a trilhar.
A caminho do Palco Cerca, onde veremos Akua Naru, espreitamos Marta Ren and the Groovelets no Castelo. De cabelo cor de fogo e envergando um vestido de lantejoulas douradas, a figura pequena de Marta parece não conseguir conter tamanha voz. Com o seu castiço sotaque nortenho, entusiasma o público e impele-o a dançar ao som da sua música embebida de soul e com um groove inegável.
Akua Naru conquistou o público do MED com a sua fusão do hip-hop e do jazz, assim como com os devaneios poéticos cheios de significado e sentimento. No entanto, essa conquista foi recíproca, dado que o público do MED também a convenceu com a sua recepção calorosa. A meio do concerto, após um incrível solo do saxofonista da sua banda, a artista diz que esteve a pensar e pede-nos desculpa por ter tentado acelerar a intimidade com o público, dado que tínhamos acabado de nos conhecer. Com um discurso cheio de innuendos sexuais, ela diz que tem de nos aquecer primeiro. Como tal, agachamo-nos todos e vamos subindo aos poucos, ao som de alguma da música mais interessante e smooth que ouvimos neste primeiro dia de festival. Possivelmente, o melhor concerto da noite.
O concerto que foi o epíteto da chamada world music foi o da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, conjunto proveniente de Benim. Dez elementos vestidos com trajes tradicionais produzindo ritmos complexos, misturando sonoridades africanas com rock e ritmos latinos e cubanos, com notória satisfação. Foi a fórmula ideal para convencer a massa humana que se ia deixando ficar apesar do vento que se fazia sentir no espaço aberto do largo da Igreja Matriz, combatendo o frio com a dança.
Entrando nas mais altas horas da noite, os projectos que mais devem à música electrónica fazem a sua aparição para acalmar os desejos dos intrépidos para quem a dança não tem um dia de semana pré-atribuído. Os portugueses Octa Push debitaram as suas batidas profundas para uma pequena multidão que ia engrossando ao longo da noite, com um live set competente. La Dame Blanche, com a sua mistura inusitada de música cubana, reggaeton e flauta, singrou principalmente pela carismática dama branca que dá a face pelo projecto. Discossauro desempoeirou colecções de vinis antigos para mais um dos seus arraiais tropicais. Celeste/Mariposa, um projecto que pretende dar a conhecer a música dos PALOP e é fruto de 8 anos de pesquisa, fez precisamente aquilo que se esperaria: um afrobaile que pôs Loulé a dançar até ao fim do primeiro dia do MED.
Aquilo que este primeiro dia não trouxe em termos de momentos musicalmente arrebatadores foi compensado pela enorme diversidade. Houve muito, e para todos os gostos; para além de que o ambiente que se vive neste festival é inigualável. O MED continua a demonstrar por que é uma referência internacional. Hoje, lá estaremos para seguir com a festa.
Fotografias: Nelson Ferreira